Os caminhos percorridos por certos vocábulos são muitas
vezes rodeios. Antes de serem portugueses, bastantes passaram por países
diversos, alterando-se pouco a pouco, distanciando-se cada vez mais da sua
origem.
Pela boca de Franceses, Italianos, Espanhóis entraram às
vezes latinismos em travesti que os torna quase irreconhecíveis.
Ideias e formações greco-arábicas espalharam-se no Oriente,
na Pérsia, na Índia, antes que de lá fossem transmitidos às nações europeias.
Com os livros e mais do que eles, os vocábulos têm fadário
curiosos: Habent sua fata vocabula.
Vejamos alguns exemplos.
Mais uma vez lembro os numerosos rebentos do latim planus no
nosso português: o adjectivo e substantivo popular chão; o erudito plano; o
castelhano lhano usado só com acepção abstracta de despretencioso, sincero,
franco; o piano da Itália; o advérbio pram ou de pram, tirado de plane, muito usado na época
galego-portuguesa; esse mesmo elevado a substantivo em linguagem náutica vulgar
na forma porão; e também os nomes de lugar Alporão, Alplan, arabizado pelo
artigo al.
Frei, abreviatura de freire, veio da Provença, onde se
desenvolvera de fradre, fratre – morto na Península por motivo difícil de
explicar.
Monge veio igualmente da Provença, sendo grego de origem
(monachos), conforme expliquei na lição prática.
Avaria foi transmitido a todo do Ocidente pelos marinheiros
de Génova, mas as suas raízes estão na Arábia.
Yacht, navio de recreio e de aparato, foi introduzido por
Ingleses, que o receberam da Holanda, mas no fundo é alemão: Jagd (de jagen).
Chefe, vindo de França, é representante directo do substantivo
latino caput, que já cá tínhamos na forma de cabo.
Jaula (de leão) é caveola, diminutivo de cava, que já nos
dera a gaiola (de pássaros).
Sorvete, com sorveteira, de introdução recente, é
evidentemente o francês sorbet, sorbetière, muito embora em Paris se dê esse
nome ao que nós chamamos carapinhada e não ao gelado pastoso que os bons
portugueses chamam neve. Para França viera de Itália, que recebera dos Turcos
sorbetto, ou pelo menos a raiz sorb, transposição de xurb derivado do verbo
árabe xarab, beber. Verbo que com as suas três consoantes radicais (três em
todas as vozes arábicas), x, r, b, talvez seja parente do latim sorb, se
efectivamente houver parentesco ou mesmo unidade primitiva entre línguas
indo-germãnicas e semíticas. Como pensam alguns glotólogos muito avançados.
Em todo o caso xarab já nos dera xarope, antigamente
axarave. Esse, latinizado, dera aos Franceses, sirop (alemão Syrup).
Tremoço, em castelhano atramuz, representa o árabe attarmôs,
attermôs, mas este não é nada mais do que o grego thermos (nome da lupina,
aparentado ou não com thermós, calor).
Triaga, em castelhano atriaga, tem as mesmas origens: da
Grécia passara à Arábia.
Barca, vocábulo hoje internacional, empregado cedo em
Portugal (numa inscrição latina de Tavira, do Algarve, do século I ou II),
passou longos tempos por ser fenício ou cartaginês, simplesmente porque os
Fenícios foram grandes navegadores e colonizaram sobretudo a costa sul da
península. Talvez também porque o pai de Hannibal (Hamilcar) tivera o sobrenome
de Barkas. Mas em cartaginês ou púnico Barkas significa relâmpago. Barca,
embarcação, entrou em sermo vulgaris da Itália por intermédio dos Gregos na
forma baris, de que eles fizeram barica e depois barca.
Baris, por sua vez, é um dos empréstimos que a Grécia
levantara no Egipto.
Entre os Egípcios modernos (os Coptos) bárias ainda hoje se
emprega.
De resto essa proveniência não era desconhecida. Só
esquecida. O próprio Heródoto a indicara.
É costume geral, justificado, englobar vocábulos desses
sempre om os da última língua que foi a intermediária directa.
Assim, diz-se simplesmente que barca vem do latim vulgar;
chefe, jaula, sorvete são franceses; yacht é inglês, avaria italiano; frei e
monge são provençais; tremoço e triaga são árabes; com o que não quero dizer
que não seja bom retroceder, à procura das verdadeiras origens, até onde
possamos.
Carolina Michaëlis de Vasconcelos, Lições de Filologia
Portuguesa. Segundo as Prelecções feitas aos Cursos de 1911/12 e !912/13.
Lisboa, Revista de Portugal, 1956, p. 285-287.
Para além de uma história, as palavras têm uma geografia. E viajam de povo em povo, que é como quem diz, vencem distâncias, transfigurando-se, de boca em boca (literalmente). Viajam. Sendo as mesmas e outras, numa dinâmica ímpar.
ResponderEliminarAqui é que é mesmo "Babel feliz"!
ResponderEliminar"São como o cristal
ResponderEliminaras palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.
Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.
Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.
Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?
Eugénio de Andrade, CORAÇÃO DO DIA, Porto, Limiar, 1977