Há muito que tencionava fazê-lo – procurar os sinais físicos de Raul Brandão na Foz do Douro – e hoje [19 de Maio de 2013], pela manhã, aconteceu. Pedi ajuda a guia do Porto antigo, e percorremos demoradamente, nos dois sentidos, a rua Raul Brandão (outrora Rua da Bela Vista), entre o Passeio Alegre e a Cantareira. De facto, como notou Manuel Mendes, cujo texto me introduziu nesta visita e que no post anterior transcrevo parcialmente, a rua deve ter sofrido alterações profundas que modificaram tanto as estruturas confinantes com o prédio com o n.º 12 da Rua, como as da frente respectiva. Em todo o caso, a rua está hoje mais bem conservada do que em 1963, quando Manuel Mendes escreveu a sua crónica intitulada “Na Cantareira”.
Foi precisamente aqui, numa esplanada de um pequeno café popular, onde os clientes habituais se preparavam para antecipar a excitação do final deste Domingo, que nos sentamos para um café. O sol rompeu timidamente, atenuando os efeitos da nortada. E enquanto comentávamos o percurso já efectuado, não pude deixar de recordar outra figura literária que habitou no Passeio Alegre: Eugénio de Andrade.
Eugénio, que conheci e visitei nessa sua casa, hoje sede de uma Fundação que atravessa tempos atribulados, viveu a escassa distancia da casa onde Brandão nasceu, e que ele um dia foi, tomando o eléctrico, mostrar ao Miguelito. Muito mais do que uma proximidade topográfica uniu os dois escritores que se não poderiam ter conhecido. Um nexo de ressonâncias e imagens, de modos de sentir e de exprimir, liga as suas obras. Eugénio de Andrade não foi porventura o mais nobre discípulo literário de Brandão?
E enquanto discutíamos o sabor do café, e víamos passar os velhos habitantes do bairro entre os sulcos do eléctrico e as incursões dos pardais, eu recordava as frases do Eugénio, que poderiam ter sido assinadas também pelo Raul.
O Porto é só esta atenção empenhada em escutar os passos dos velhos, que a certas horas atravessam a rua para passarem os dias no café em frente, os olhos vazios, as lágrimas todas das crianças de S. Vítor correndo nos sulcos da sua melancolia.
O Porto é só a pequena praça onde há tantos anos aprendo metodicamente a ser árvore, aproximando-me assim da restolhada matinal dos pardais, esses velhacos que, por muito que se afastem, regressam sempre à minha vida.
AS PALAVRAS INTERDITAS
ResponderEliminar"Os navios existem, e existe o teu rosto
encostado ao rosto dos navios.
Sem nenhum destino flutuam nas cidades,
partem no vento, regressam nos rios.
Na areia branca, onde o tempo começa,
uma criança passa de costas para o mar.
Anoitece. Não há dúvida, anoitece.
É preciso partir, é preciso ficar.
(...)
Eugénio de Andrade, "As Palavras Interditas", in ANTOLOGIA BREVE, Lisboa, Moraes, 1980.