quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Evocação de Raul Brandão. Com Aquilino Ribeiro (I)

UM HOMEM BENIGNO

Estou a vê-lo a subir o Chiado a passos lentos, dobrado e ficando ainda um homem alto, os olhos a azulejar em torno, um bom sorriso nos lábios, pronto a dar-se. Ia reunir-se à sua roda, na Livraria Bertrand ou no Café. Raul Brandão prezava o convívio dos amigos, por quem gostava de ser acarinhado, mas não provocava a blandícia. Com uma bonomia de velho capitão de porto, gozando os ócios e a reforma, sentava-se na Brasileira, geralmente ao fundo se havia lugar. O seu cristianismo era uma espécie de cancela franca, por onde passava cordialmente gente de toda a moral e condição, o rapaz de valor e o patarata, o patife e o honesto,o grego e o troiano. No âmago da consciência diferenciava como ninguém, e ia registando
À sua mesa quem pagava era invariavelmente ele, como se fosse não uma devoção, mas uma prerrogativa. Era o troco em miúdos à admiração e vénia que lhe tributavam. Não figurava também de senhor da Nespereira?
De modo geral prestava orelha deferente a cortesãos e estafadores. Era homem que sabia ouvir. Quando intervinha, fazia-o com pausa, entrecortadamente. Dir-se-ia que andava longe. Talvez andasse, sim, pelos cemitérios, pela noite escura a arrebanhar fantasmas que haviam de representar no seu guinhol, prodigiosamente evocador.
Quando falava, punha certo despacho na voz, sem o quê entaramelava-se-lhe a língua a meio da oração ou gaguejava, acabando tantas vezes, à maneira dum eco mofino, a retomar as sílabas terminais das palavras.
Como contava mais vinte anos do que eu, julgava-me obrigado a não corresponder  ao tratamento sem-cerimonioso ou antes desafectado que usava para comigo. Tratava-me por tu, eu tratava-o por senhor. Mas semelhante desconformidade não me inibia de pôr nas nossas relações a franqueza mais fraterna, por vezes destravada, consoante o humor. Lembro-me que uma vez, subindo a rua do Carmo, me perguntou à queima-roupa:
- Que tal achas o meu teatro?
- Pede-me a opinião leal?
Começou a gaguejar.
- Pede ou não pede?
- Dize lá...
-O seu teatro é uma borracheira.
Mas o homem de letras que escreveu El-rei Junot e Os Pescadores tem costas largas para carregar, sem dar tombo, com semelhante pacotilha.
Não era rancoroso, e eu permitia-me nos meus verdores ser impertinente com ele. Por vezes, e era injustiça,  punha-lhe na cabeça o carapuço  do seu próprio Gabiru. Ele ria, tolerantíssimo, duma tolerância filosófica sem despeitos nem reservas. Era integralmente um santo homem, convencido da fatuidade do bem e do mal, de quanto o esforço humano é vão, e de que tudo à superfície da terra, a começar pela ciência e a arte, é uma espuma falaz. No entanto, a sua posição, sob o ponto de vista de cidadania, era a de combatente duma barricada. Desde que o conheci, e foi durante uma década de anos, não dei conta que se arredasse do parapeito. Batia-se pelos desgraçados, pelos humildes, pelos triste, pelos que tinham fome e sede de sol, de simpatia ou de pão, simbolizados na mulher da esfrega, na Candidinha malfadada; batia-se e sofria pelos próprios maus, vítimas de uma sociedade iníqua e duma nefasta sina sem remissão. A sua gesta, no livro, na palestra, era a dum revoltado.
A obra de Raul Brandão é altivamente eloquente no que tem de social, por conseguinte de humano. A dor foi sempre o centro planetário da sua arte. Mas não a dor metafísica, pela qual se é fácil cavaleiro, mas a dor individuada, que nos torna solidários e responsáveis com o próximo. A par com esta feição toda evangélica, em literatura era um artista do impressionismo. Os Pescadores e Portugal pequenino são duas obras, irroradas de todas as tintas da Primavera e da candura da neve, do melhor que pode ostentar a língua.
Vinculados por amizade de camaradas, era livre entre nós a facécia. Quando se representou no Teatro do Politeama, na festa dos Vendedores de jornais, uma bluette sua, solicitaram-me para escrever a apresentação. Foram-lhe com a notícia. Acudiu todo lampeiro:
- Dou-te um pipo de vinho se disseres bem de mim...
- Nem que me desse um tonel, digo mal.
Leu-a Alves da Cunha, mestre da declamação, criador sem igual de tipos arrancados à realidade como os pedregulhos das minas que trazem consigo a ganga e forma cósmica dos penetrais.
"Se V. Ex.as, minhas senhoras e meus senhores, nunca ouviram uma gargalhada de Plauto, desintoxicadora, sã, visceral, vão ouvi-la dentro de pouco. Consubstancia-se na farsa ou sainete de mestre Raul Brandão, o escritor mais amargo que jamais viu a luz de Portugal, Zurbaran caldeado de Dostoiewski, e que constitui o número 2 do programa. Mais de um se dirá entretanto: pois quê, este homem ruço e de um esgalgado triste de choupo, de pupila desmesuradamente azul, azul como amostra do mar em que nasceu, que pinta e ama com a ternura do velho lobo marinho, este mágico que no Inverno passeia pela Cidade uma bengalinha de mestre-escola e na Primavera uma capa preta, majestosa, herdada de Hamlet ou do rei D. Afonso VI, é capaz de largar a sua sonora e jogralesca gargalhada?
Sim, senhores, este artista de génio que, à semelhança da serva de Deus de que reza Bernardes, se compraz a ver através do corpo das pessoas a sua conformação íntima, depois da carga de ossos o lodaçal psíquico, que anda desde o berço a sonhar com a Morte e há-de lográ-la, que lhes juro eu, como carpinteiro da historieta, a uma partida de chincalhão, sabe rir melhor que qualquer bom fabiano e, sobretudo, sabe fazer rir. Não há que estranhar. O riso fica paredes meias com a lágrima, alfa e ómega do ser e do porvir, pontos extremos por que se soldam os fusis do enigma na cadeia da vida. A satisfação abalisada, o epicurismo, o estou-me marimbando pertencem a um sector hediondo, sorte de cibório onde só medram cardos e urtigas.
Depois, eu lhes confesso à puridade, quando se colhe como Raul Brandão o vinho mais espiritual do Minho, este vinho que, ao sair do espicho, fica a cantar no cangirão o vira-virou e a caninha verde; quando se tem na estante as espécies mais raras do saber humano, desde Epicteto, numa edição quinhentista, a Barkmann, em estampa gótica castelhana, filósofos estes da reconfortação, nem custa a rir nem a chorar com as coisas infinitamente hilares ou deploravelmente  miserandas de que está coalhado o mundo.
A farsa que vão ter o regalo de ouvir não passa mesmo assim dum acidente na carreira do escritor. Aqui andou ele à superfície das almas, quando é condão seu descer às suas profundidades abissais pesquisando e esclarecendo. As sombras ele as condensa sob os feixes de pura radiação solar do seu espéculo. Raul Brandão é um desbravador de mistérios. A sua necrofilia traduz o afã com que experimenta devassar os arcanos para lá do mundo visível. Os mortos, com efeito, vêm sentar-se-lhe à lareira ou enchem-lhe o espaço nocturno do quarto de dormir com o seu murmurinho e a sua presença, embora não menos intrespassável à vista do que ao ferro. Ao mesmo tempo seu seio abarrota daquelas personalidades místicas que cada pessoa traz dentro de si, nele tumultuárias e eliseanas. Elas, os párias em que ninguém atenta e os seres que andam a rastos serão os figurantes centrais na obra deste escritor, dotado de uma sensibilidade de nórdico. Os vivos, em seu comum, tal como se apresentam e falam, são pouco na sua pena. A esses há-de atormentá-los primeiro, decompô-los em sua luz e treva, palpar-lhes a caveira, aspirar-lhes o fartum de cadáver, para que compartam dignamente da sua galeria. A arte de Raul Brandão é assim desintegradora e interrogativa.
Por exemplo: V. Ex.as conhecem o Gabiru, tal como caminha nas ruas e se movimenta na praça, na política, nas tramóias do amor...?! Se conhecem! Já uma vez o fizeram ir à esquadra; já lhe deram mesmo uns pontapés. Pois se o querem ver por dentro na sua relojoaria complexa e, embora amassado de argila divina, roubando o órfão, seduzindo a cachopa inocente, embarrilando o irmão, pregado numa prancha e catalogado como bestiola vulgar, folheiem o Húmus. Aí se lhes depara esta criação larvar em sua morfologia ampla e bem assim a Mulher da esfrega, alma a escorrer dó e miséria. É essa, a mais trágica de todas, que se ergue subitamente diante de nossos olhos a acusar. Quem? Tudo, os homens, Deus, os destinos. Do mesmo modo que estas duas personagens, todas as demais de Raul Brandão entram-nos para o coração e aí ficam a uivar, sangrando, convertidas em alcateia de espectros. O privilégio, raro, de exercer semelhante metamorfose explica a sua garra. Quando assim se modelam almas e se esculpem, como nos havemos nós de furtar ao preceito de rir ou chorar ante tão miguelangelescas estátuas? Compreende-se pois que um artista deste estofo tenha, por sua vez, quando lhe apetecer, o direito de rir às bandeiras despregadas, com propósito ou sem ele, irreverente ou ao desfastio, rir como Micrómegas ou como Júpiter Tonante, diante duma coisa patusca ou coisa austera, rir como os outros chorem, para lá dos horizontes abertos. Não lhes apresentei Raul Brandão: a tanto não chega o meu coturno. Disse-lhes apenas de que áscua provém a farsa que vão ouvir: O Doido e a Morte.'

 Aquilino Ribeiro, Camões, Camilo, Eça e Alguns Mais, Lisboa, Livraria Bertrand, 3ª ed., s. d.,pp. 248-250.

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