Viaggio in Italia, para quem nunca o tenha visto, o que é? Como Sunrise de Murnau, como O Convento de Oliveira, como Lucky Star de Borzage ou como Os contos da Lua Vaga de Mizoguchi, é a história da separação e da reconciliação de um casal. O casal Joyce, casal inglês de meia-idade (trinta e muitos, quarenta e poucos) bem instalado na vida, que vem à Itália vender uma propriedade que herdara de um tio chamado Homer (Joyce e Homero podem ser nomes casuais, podem não o ser). Casal são-no, porque são casados. Casal não o são, porque estão razoavelmente fartos um do outro. A viagem - rumo a Nápoles e nos arredores de Nápoles - dura sete dias (número mágico). Alex, o marido (George Sanders), namora por aqui e por ali, engata (ou é engatado) por uma pega, aborrece-se de morte. Katherine, a mulher (Ingrid Bergman) faz muito turismo: Museu Arqueológico de Nápoles, ruínas de Cuma (antro da Sibila), Templo de Apolo, Vesúvio, Pompéia, a solfatara de Pozzuoli. Recorda um poeta que a amou e morreu novo e tuberculoso, finge ciúmes do marido, farta-se com ele e dele. Ao sétimo dia, a propósito de uma discussão absurda sobre o Bentley deles, decidem divorciar-se logo que voltem à Inglaterra. Horas depois, o carro em que viajavam, muito calados, é forçado a parar porque uma procissão atravessa a estrada. Saem, cada um de sua vez, para ver o que se passa. A certa altura, a multidão desata a gritar “milagre” a propósito do tal paralítico. Na confusão, cada um deles é empurrado em direções opostas. Katherine chama pelo marido. Quando este a consegue alcançar, abraçam-se e juram nunca mais se separar.
Nem Katherine nem Alex parecem pessoas muito interessantes. Nada lhes acontece de muito particular.Qualquer pessoa está mesmo a ver que divorciar-se é o que podem fazer de melhor. Uma procissão, o “ave” de Fátima e os dois nos braços um do outro a jurar amor eterno. Milagre da Virgem que protege o santo matrimônio? Quem nunca tinha visto e só isto ler, percebe facilmente as reações da época.
Só que dizer isto ou não dizer nada é praticamente a mesma coisa. Não porque a história não seja isto, mas porque sob isto, ao lado disto, ou sobre isto (e nenhuma das preposições é boa) se passa tudo o que é essencial e não é traduzível em palavras.
Não vou citar nenhum exemplo dos mais célebres, como a perturbação de Katherine face aos nus masculinos do Museu de Nápoles, o passeio solitário dela ao Templo de Apolo, a “ionização” na solfatara, com o fumo e o cheiro a sufocá-la, o esqueleto visto nas catacumbas, a descoberta, durante as escavações em Pompéia, dos corpos calcinados de um casal abraçado, há dois mil anos abraçados. Não vou falar da confusão das ruas de Nápoles ou de Capri, das mulheres grávidas que se cruzam constantemente com Katherine, das zaragatas conjugais a que assistem e que tanto chocam reservados ingleses.
Vou referir-me apenas à seqüência inicial, quando, no Bentley, Katherine e Alex se dirigem para Nápoles. Primeiro, um diálogo, pedagogicamente concebido, que nos dá todas as informações úteis: quem são eles, onde se dirigem, o que vieram fazer à Itália. Depois, o marido adormece e percebemos que é a mulher quem guia. O marido acorda e propõe à mulher trocar de lugar. Em vez do corte e novo plano do carro com as novas posições, assistimos à troca toda, com toda a minúcia. No segundo minuto do filme, segunda paragem: agora é uma manada de bois que atravessa a estrada e os impede de prosseguir. Irritação de Alex, que já comentara que as estradas em Itália são um perigo. Segue-se uma bifurcação: uma seta indica Nápoles para a esquerda e Latina para a direita. O carro vira à esquerda (já sabíamos que o destino era Nápoles), mas a câmera vira-se para a direita, como se o outro caminho fosse o bom e eles o não soubessem. Pouco depois, Katherine faz uma expressão de horror: “Que é isto? Sangue?” E Alex responde, irônico, que foi só um mosquito que seesborrachou no vidro. Falam dos perigos da malária.
Aparentemente, nada se passou de particularmente interessante. Mas, nesses cinco minutos de filme, quem for capaz de ver, viu o essencial. A viagem é conduzida pela mulher, como sempre o será ao longo do filme, porque é ela quem vê quase tudo o que o marido não vê, como é ela quem o chama no final. Mas ela sem ele não existe. Por isso, ele tem de conduzir também e tudo o que lhe acontece, depois, é tão fio condutor quanto o que lhe acontece a ela. Em cada bifurcação, há sempre duas possibilidades. Seguir o que está predeterminado implica deixar aberto o desconhecido. A qualquer plano ou ordenação sobrepõe-se a desordem e o imprevisto: bois não querem saber de Bentleys e podem parar - ou atrasar - uma viagem. Uma mancha de sangue pode não ser uma tragédia mas pode não ser tão banal como parece. Na vida não há símbolos, há sinais. A cada momento, cada sinal.
E é a acumulação de todos esses momentos e de todos esses sinais que, a cada momento e a cada sinal, vai minando aquele homem e aquela mulher que parecem fatalmente seguir numa outra direção (a ruptura) e não menos fatalmente estão a seguir noutra (a redescoberta). Quando perdem o pé (o carro, a casa, a direção, a estrada), tudo o que de vital e mortal se acumulou neles explode, tão irracional e tão racionalmente, como a fé da multidão no milagre da Virgem. E é essa explosão - essa erupção, essa ionização, se quisermos ficar ao pé dalgumas imagens do filme - que os atira um para o outro, no mesmo abraço dos cadáveres de Pompéia. Talvez que eles também - que sabemos nós? - não estivessem a fazer amor, nem mesmo se amassem. Talvez que, surpreendidos pela erupção do Vesúvio, se tivessem agarrado para não morrerem sós. Só que dois corpos juntos, juntos mesmo, dois mil anos ou dois segundos, são o milagre total. No Evangelho de Pseudo-Tomé há uma variante, mais profunda e mais certeira, da conhecida passagem dos sinópticos em que se diz que a verdadeira fé move montanhas. Em vez da passagem: “Se tiveres a verdadeira fé e disseres àquela montanha move-te, a montanha mover-se-á”, diz-se: “Se um homem e uma mulher viverem em verdadeira paz um com o outro e um deles disser àquela montanha move-te, a montanha mover-se-á.” Em vez da fé, a caridade. É o cerne do cinema de Rossellini.
Nem eu nem ninguém vos pode jurar que, regressados ao carro ou a casa, Alex e Katherine não recomecem as quezílias. Mas o milagre aconteceu. Não é bom que o homem ou a mulher estejam sós. Viaggio in Italia, como disse Rohmer, é um drama com três personagens. O terceiro é Deus. E em Viaggio in Italia quem O não vir não vê nada.
É só um filme? Precisamente.
João Bénard da Costa
http://www.focorevistadecinema.com.br/FOCO1/benard-viagem.htm
Ficha técnica:
Título original: Viaggio in Italia, Itália, França, 1954
Realização: Roberto Rossellini
Ficha artística:
Ingrid Bergman: Katherine Joyce
George Sanders: Alexander ‘Alex’ Joyce
João Bénard da Costa
http://www.focorevistadecinema.com.br/FOCO1/benard-viagem.htm
Ficha técnica:
É SÓ UMA HISTÓRIA?
ResponderEliminarEla não se rala com as botas sujas no chão acabado de lavar, desde que ele esteja contente. E sente o mesmo quanto aos salpicos à volta da bacia: ele está em sua casa; poderia entrar a cavalo. Não é ofensivo vê-lo dobrado, de mangas arregaçadas, com as mãos na água, não como uma mulher acocorada a amanhar o peixe, mas segurando-o com as palmas das mãos muito abertas, para o acariciar, massajar, imitá-lo, com a boca aberta em apneia e os olhos abertos e sem brilho. É pouco dizer que ela o observa; ela contempla, petrificada, aquele que, embora próximo, se mantém desviado dela, absorvido pelo animal que se debate sem forças e, apesar disso, morre.
E por ser ingénua, a sua representação de tudo aquilo contribui para aumentar ainda mais a estatura do homem, a sua corpulência: é imenso, esse homem que regressa a ela sem sequer se preocupar em descalçar-se, de pernas afastadas para deixar escorrer o seu embrulho luzidio. Assim conservará ela a sua imagem, para se manter de pé depois dele partir: uma força de reserva, concentrada nos joelhos dobrados, depositada na borda de uma bacia onde se debate um animal resplandecente.
Brigitte Paulino-Neto, A MELANCOLIA DO GEÓGRAFO, Lisboa, Edições Asa, 1995, pp. 8-9.
É SÓ UM TÍTULO?
ResponderEliminarAcompanho, habitualmente com grande interesse, o "diálogo" entre o autor do blog e os comentários dos seus leitores, particularmente o "jogo" ou a teia entretecida entre ele, autor, e os textos citados pelo/pela seu/sua correspondente anónimo/a.
Confesso, no entanto, que desta vez, e pela vez primeira, me escapa a pretendida relação entre o texto de Bénard da Costa e o de Brigitte Paulino-Netto. O "milagre" em que consiste desta feita? Qual o Deus que está ali sem estar visível? Está presente a fé e está presente a caridade? Sim, estão. Porém, são unívocas, caminham num só sentido, o que lhes retira grande parte do valor simbólico. Um abraço reclama quatro braços.
Que falta sinto de Bénard da Costa!
ResponderEliminarDo seu olhar singular sobre os filmes, do modo único como nos captava o olhar para (também nós) os vermos de outro modo.
"Na vida não há símbolos, há sinais. A cada momento, cada sinal."
ResponderEliminarQuanto se aprende lendo um texto como este!
Agora falta-me ver o filme, que desconheço. Mas já parto para ele com ferramentas próprias. Como a "vara de vedor" de que fala João Barrento, quando diz da necessidade que dela tem o leitor de ensaios, e de como a vai adquirindo.
É gratificante assistir ao modo como o pensamento se constrói de autor em autor: do cinema para a escrita; da escrita para o cinema. De um modo ensaístico, experimental, como a vida. Em movimento, como no cinema.
A TEIA MAL ENTRETECIDA
ResponderEliminarCom ou sem Ingrid Bergman e Gregory Peck, João Bénard da Costa habitou Casas Encantadas. Uma delas, no verde-azul da Arrábida, mobilou-a de presenças, vozes, músicas, poesia e fez, das janelas, lanternas mágicas que lhe deram a ler os sentidos das histórias e um sentido para a História. Acreditou, assim, em milagres de fé e na autenticidade da Caritas, aquela que, de joelhos, tudo dá sem nada pedir.
De janelas menos discretas, há quem asseste binóculos sobre o mundo, se não pode andá-lo, e vá contando. "Um abraço reclama quatro braços"? Nem por isso. Na maioria das vezes, bastarão três, dois, um até. "Juntos, juntos mesmo" por mais de um segundo, só quando vir "apartar-se de uma outra vontade/ que nunca poderá ver-se apartada." UMA VONTADE, Mário Neves.
Eva/Katherine, mulher, criou raízes e deitou ramos. Frutifica e fica. Adão/Alex, recolector predador, terá de partir. Regressará, sim, de vez em vez. Abraçar-se-ão. No frio, no medo, na fome.
Milagre? Epifania? Miragem? Epifania? Milagre?
Pois seja milagre.
Mas Deus, que os exilou, não é chamado a este outro paraíso.
CASAS ENCANTADAS E JANELAS INDISCRETAS
ResponderEliminarJulgo entrever, nesta explicitação deliberadamente hermética, um discurso no género masculino, pronto a receber e achando antropologicamente justificado pouco ou nada entregar de si. Quanto à presença ou ausência da divindade, estamos entendidos. Cada um de nós tem o direito e o absoluto dever de duvidar.
Mas que fazer da vida, se não fazer por fazer uma espécie qualquer de milagre? Ainda de ilusório, ainda que fugaz?