Carta do Comandante Gulliver a seu primo Sympson
Espero que estarás disposto a reconhecer publicamente, ainda que to peça, que me pressionaste, constante e frequentemente, para que publicasse um relato deslavado e incorrecto de minhas viagens, com a indicação de recorrer aos serviços de algum jovem universitário de Oxford ou Cambridge para lhe dar ordem e corrigir o estilo, como o fez o meu primo Dampier, seguindo os meus conselhos, com o seu livro intitulado Viagem à Volta do Mundo. Mas não me lembro se te dei autorização para omitir tudo isto; e muito menos que se efectuassem inserções. Por conseguinte, no que respeita a estas últimas, nego ser o autor delas, especialmente, no que se refere a um parágrafo acerca de Sua Majestade a rainha Ana, de piedosíssima e gloriosa memória, a quem dediquei uma reverência e estima superiores às de qualquer outro mortal. Mas tu ou o revisor deveriam ter tido em conta que, como esta não era a minha natural inclinação, não era honesto elogiar qualquer animal da nossa natureza perante o meu amo houyhnhnm. E, além disso, este facto é completamente falso; pelo que sei, tendo permanecido em Inglaterra durante parte do reinado de Sua Majestade, a rainha, ela governou com a ajuda de um primeiro-ministro; para ser mais preciso, com a de dois consecutivamente. O primeiro foi lorde Godolphin e o segundo lorde Oxford, de modo que me fizeste dizer o que não era. De igual modo, na relação da Academia de Inventores e em diversos passos do meu discurso a meu amo houyhnhnm, omitiste, separaste ou alteraste alguns aspectos circunstanciais, de tal forma que pouco me reconheço nele como autor. Quando, faz já muito tempo, sugeri em carta algo sobre isto, tiveste a amabilidade de responder-me que tinhas medo de ofender alguém. Os que detêm o poder submetiam a imprensa a apertada vigilância e estavam inclinados, não só a interpretar, mas também a castigar qualquer coisa que tivesse um aparente significado sedicioso ou fustigante.
Mas, por favor, como pode ser que o declarado noutro reino se aplique a qualquer dos yahoos que ora se diz que governam a manada? Especialmente numa época que eu não considerava uma desgraça nem temia viver sob a sua obediência. Acaso não tenho todos os motivos para queixar-me ao ver esses mesmos yahoos transportados numa carruagem puxada por houyhnhnms, como se os primeiros fossem as criaturas racionais e os segundos os brutos? E, na verdade, foi esse o motivo por que dali me afastei, para evitar a contemplação de espectáculo tão monstruoso e horrendo.
Isto é o que considerei adequado comentar quanto a ti e à confiança que em ti depositava.
Queixo-me agora da minha própria e enorme falta de prudência por ter aceite os avisos e sofismas provenientes de ti e de outros, diametralmente opostos à minha opinião, de permitir a publicação de As Viagens. Recorda-te, por favor, com que frequência te pedi para considerares, quando aduziste constantemente razões de bem público, que os yahoos eram uma raça de animais absolutamente incapazes de emenda mediante ordens ou exemplos. E verificou-se que assim era; porque em lugar de contemplar uma total paralisação de todos os excessos e corrupções, pelo menos nesta pequena ilha, tal como seria legítimo esperar, eis que, após seis meses, não pude comprovar que o meu livro tenha produzido um só dos efeitos que previra. Ansiei por que me desses a conhecer por escrito quando se tinham abolido os partidos ou facções, quando os juízes tinham actuado com justiça e discernimento, os demandantes com humildade, honestidade e com alguns indícios de bom senso, quando na praça de Smithfield se tinham queimado avantajadas pirâmides de livros de direito. Quando a educação da juventude nobre mudara por completo, os médicos desterrados, as yahoos femininas abundantes de virtude, honra, verdade e bom senso; as reuniões de escárnio e maldizer, parlamentares ou privadas, banidas e extintas; o engenho, méritos e saber recompensados; todos os que aviltam a máquina de impressão com a sua má prosa ou verso condenados a nada mais comer que as bolas de algodão (com que os impressores dão tinta às pranchas) e a matar a sede com a sua própria tinta.
Graças aos teus esforços, contava fundamentalmente com estas e outras mil reformas; e, com efeito, estas deduziam-se com clareza dos conselhos contidos no meu livro. E deve reconhecer-se que sete meses era tempo suficiente para emendar todos os vícios e loucuras a que os yahoos estão sujeitos se tivessem possuído a natural disposição, ainda que em mínima quantidade, para a virtude ou para a sabedoria. Até à data não encontrei nas tuas cartas nenhuma das respostas que esperava; pelo contrário, estás a avolumar este assunto com libelos, notas, reflexões, memorandos e adendas em que me vejo acusado de criticar as gentes dos grandes estados, de degradar a natureza humana (ainda que tenham a desfaçatez de assim considerá-la) e de injuriar o sexo feminino. Verifico, também, que os autores desses panfletos não se põem de acordo entre si; alguns não me atribuem a autoria das minhas próprias viagens, enquanto outros me consideram autor de livros com os quais nada tenho a ver.
Verifico, igualmente, que o teu impressor foi muito pouco cuidadoso: confundiu as horas, datou mal as minhas diversas viagens e regressos a casa; não indicou tão-pouco o verdadeiro mês, nem o dia do mês. E informam-me que, uma vez publicado o livro, ó manuscrito original foi destruído. Não tenho cópia alguma em meu poder. No entanto, escrevi algumas correcções que podes interpolar, no caso de se publicar uma segunda edição. E, apesar de tudo, não posso opor-me a elas: deixarei o assunto nas mãos dos meus judiciosos e ingénuos leitores para que o solucionem a seu gosto.
Chegaram aos meus ouvidos rumores de que alguns dos nossos yahoos marinheiros encontram erros nas minhas expressões de marinharia. Dizem que não é adequada nalguns passos, nem está actualmente em voga. Quanto a isso, nada posso fazer. Nas minhas primeiras viagens juvenis recebi ensinamentos de velhos lobos do mar e aprendi a falar como eles.
Mas desde então descobri que os yahoos marinheiros são propensos, como os de terra, a confundir-se com as palavras; os segundos mudam-nas todos os anos. Pelo que recordo, em cada um dos meus regressos ao meu país, a forma de falar alterava-se, ao ponto de dificilmente os entender. E verifiquei quando um yahoo chegou de Londres para, por curiosidade, fazer uma visita a minha casa que não somos capazes de exprimir os nossos pensamentos de forma inteligível.
Se a crítica dos yahoos pudesse, de algum modo, afectar-me, muito fundamento teria para queixar-me de que alguns se atrevem a opinar que os meus livros são mero produto da minha própria imaginação; e chegaram 'mesmo a sugerir que os houyhnhnms e os yahoos são tão irreais como os habitantes da Utopia.
Devo, em verdade, confessar, no que respeita aos habitantes de Lilliput, Brobdingnag (assim deveria escrever-se esta palavra, e não Brobdingag, como erroneamente se faz) e Laputa; nunca chegou ao meu conhecimento que um yahoo seja tão presunçoso ao ponto de pôr em dúvida a sua existência ou os respectivos factos que relatei: a convicção da sua veracidade invade imediatamente o leitor. E existem menos aparências de probabilidades no meu relato dos houyhnhnms ou dos yahoos quando, no que respeita aos segundos, há muitos milhares nesta cidade que só se diferenciam dos seus néscios irmãos do país dos houyhnhnms por balbuciarem umas palavras ou não andarem nus?
Não escrevi procurando a sua aprovação mas para que se corrigissem. O aplauso universal de toda a raça terá para mim menos importância que o relincho dos dois degenerados houyhnhnms do meu estábulo. Com estes, apesar da sua evidente degeneração, ainda aprendo algumas virtudes, sem mácula de vício.
Atrevem-se estes miseráveis animais os yahoos a pensar que a minha degeneração chega ao ponto de defender a minha veracidade?
Apesar de ser yahoo, é bem sabido em todo o país dos houyhnhnms que, graças aos ensinamentos e exemplos de meu ilustre amo, fui capaz em dois anos (ainda que confesse que com muitíssima dificuldade) de despojar-me dos hábitos infernais de mentir, jogar às cartas, enganar e falar com ambiguidade, tão profundamente enraizados em todas as almas da minha espécie, em especial nos europeus.
Tenho outras queixas a apresentar nestas vexatórias circunstâncias, mas não quero aborrecer-me nem aborrecer-te mais. Devo confessar sinceramente que, desde o meu último regresso, diversas corrupções da minha natureza yahoo reviveram em mim ao conversar com alguns da tua espécie e, em particular, com os da minha própria família, por necessidades inelutáveis. De outro modo nunca teria intentado um projecto tão absurdo como o de reformar a raça yahoo neste reino; embora actualmente já tenha abandonado por completo todos estes projectos por quiméricos.
2 de Abril de 1627
Lemuel Gulliver
Travels into Several Remote Nations of the World, in four parts. By Lemuel Gulliver, first a surgeon, and then a captain of several ships. London, printed for Benj. Motte, 1726.
Usou-se aqui a tradução de autoria não identificada incluída na edição digital desta obra [http://www.livros-digitais.com].
Há várias edições em português desta obra.
Possuo a da Relógio d'Água, Lisboa, 2010, tradução de Luzia Maria Martins.
DAS ESTACADAS QU'ESTAM POR ESTE MAR
ResponderEliminarEntre o Rio Paguode e Baçaim, per todo mar aparecem grandes estacadas distando de terra espaço de huma leguoa e meia, as quaes são de arequeiras e outros grandes e poderosos paos, de grossura de mastos de mezenas de caravelas; obra sem duvida ilustre e dina de ser vista e contemprada, onde craramente se nos mostra quanto mais pode a nececidade que ha arte, quanto mais aguça os ingenhos a fome que a doutrina! como sobrepujam os artificios feitos pera nosso repairo e sostentamento aos do ensino, causados per a curiosidade e fama, considerando como os moradores destas prayas pera enganarem os pexes do mar pera remedio de suas vidas fizerom obra que a Cesar deu grande nomeada, avendo entre estas duas partes tamanha desigualdade; porque a Cesar nam faltava em seu campo grandes arietes, tistudines, e outros espantosos istromentos, pera que com grandes e pesados golpes tanchassem os mastos no fundo dos rios para que sobre eles como sobre culunas fizessem pontes, nem menos avia mingua de arquitetos em seo arrayal, porque neles andava Vetruvio e outros singulares barões; e assi mesmo nem Cesar nem os Romãos eram a este tempo esquecidos da fortuna, ante parecia que a tinha de sua mam, cujo parece ser a parte principal de todalas cousas. Mas estes vezinhos que potencia? que copia de istromentos? que abastança de sciencias lhe vemos? que sortes de ferramentas, artelharias possuem? Certamente que á primeira vista pouca deferença fazem de bestas selvajes; eles vivem nús, suas casas são muito abaxo na pulideza e artificio, dos ninhos das aves, e covas e moradas de feras; na vida nam tem algum concerto e primor; de todo são remotos d'artes; neles nam parece poder alguma cousa o insino; as terras que moram mais per sua fertilidade e abundancia, que per seos beneficios e cultura lhe dam os frutos; e sendo isto assi, apertados de nececidades cotedianas buscaram modo para poder viver, e em suas proves e fracas almadias levam grandes e notaveis paos ao alto mar, e lá, as mãos carregando neles, os metem no fundo fazendo tamanhos lanços de estacadas que parece fazerem grande injuria ao magno oceano e quererem-no atravessar com pontes.
Dom João de Castro, PRIMEIRO ROTEIRO DA COSTA DA ÍNDIA DESDE GOA ATÉ DIO: NARRANDO A VIAGEM QUE FEZ O VICE-REI D. GARCIA DE NORONHA EM SOCORRO DESTA ULTIMA CIDADE 1538-1539, Porto, Typographia Commercial Portuense, 1834, pp. 183-184.