sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

No caminho para a cidade celeste (4). Maria Clara de Almeida Lucas

Relacionado com o simbolismo da água do mar, está o da barca que transporta o viajante. Esta tem o seu arquétipo na Arca de Noé (Gen. 7, 1-6) que encerra em si todos os aspectos de que se revestem as outras embarcações.
Tal como Noé, também Amaro "fez fazer hūa nave muy boa e forte o mais que pode e como foy de todo cõprida ha guarneceo muy bem de viandas e de todo o que lhe fazia mester. E desque foy bem aparelhada entrou o bemaventurado Amaro com toda sua companha e alçarom vella..."
Este é um doses símbolos mais ricos da tradição judeo-crustã: salvaguarda da espécie humana, sinal da presença de Deus, santuário onde os hebreus guardam a arca da aliança feita com a divindade. Preservando a raça humana, a arca de Noé transforma-se no refúgio e salvaguarda do conhecimento anterior ao dilúvio.
Em várias culturas a barça aparece ligada à ultima viagem do homem. Neste contexto, Bachelard relaciona a água com a barca e com o culto da árvore funerária.

Maria Clara Almeida Lucas, "A Cidade Celeste na Hagiografia Medieval Portuguesa", in O Imaginário da Cidade. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian/ACARTE, 1989, p. 83.

1 comentário:

  1. À BARCA!

    Arrais do Inferno:
    À barca, à barca - hou lá! -,
    que temos gentil maré!
    Ora venha o carro à ré:
    feyto, feyto, bem está.
    Vai allí, muytieramá,
    e atesa aquelle palanco,
    e despeja aquelle banco,
    pera a gente que virá.

    À barca, à barca, hu!...
    Asinha, que se quer yr!
    Oh que tempo de partir,
    louvores a Berzebu!
    Ora - sus! - que fazes tu?...
    Despeja todo esse leyto.

    Companheiro:
    Em bonora: logo he feyto.

    Diabo:
    Abayxa aramá esse cu.
    Faze aquella poja lesta,
    e alija aquella driça.

    Companheiro:
    Ó caça, ó ciça!

    Diabo:
    Oh que caravela esta!
    Põe bandeyras, que he festa!
    Verga alta, âncora a pique!

    Gil Vicente, AUTO DA BARCA DO INFERNO, IN OBRAS COMPLETAS, Porto, Livraria Civilização. 1979, pp. 56-57.

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