sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

No caminho para a cidade celeste (4). Maria Clara de Almeida Lucas

Relacionado com o simbolismo da água do mar, está o da barca que transporta o viajante. Esta tem o seu arquétipo na Arca de Noé (Gen. 7, 1-6) que encerra em si todos os aspectos de que se revestem as outras embarcações.
Tal como Noé, também Amaro "fez fazer hūa nave muy boa e forte o mais que pode e como foy de todo cõprida ha guarneceo muy bem de viandas e de todo o que lhe fazia mester. E desque foy bem aparelhada entrou o bemaventurado Amaro com toda sua companha e alçarom vella..."
Este é um doses símbolos mais ricos da tradição judeo-crustã: salvaguarda da espécie humana, sinal da presença de Deus, santuário onde os hebreus guardam a arca da aliança feita com a divindade. Preservando a raça humana, a arca de Noé transforma-se no refúgio e salvaguarda do conhecimento anterior ao dilúvio.
Em várias culturas a barça aparece ligada à ultima viagem do homem. Neste contexto, Bachelard relaciona a água com a barca e com o culto da árvore funerária.

Maria Clara Almeida Lucas, "A Cidade Celeste na Hagiografia Medieval Portuguesa", in O Imaginário da Cidade. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian/ACARTE, 1989, p. 83.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

No caminho para a cidade celeste (3). Maria Clara de Almeida Lucas

O rio que corre sob a ponte pertence a outro grupo de símbolos fundamentais desta visões e que engloba o rio, o lago, a fonte e a água do mar.
[...]
Lugar por excelência do renascimento e das grandes transformações, o mar é o símbolo da dinâmica da vida. Por isso é escolhido para a viagem que o santo [Santo Amaro] inicia a caminho da morte que o fará renascer. Impróprio movimento das águas, na sua incerteza, é símbolo de insegurança , de dúvida quanto ao lugar de chegada, aqui apenas anunciado "para os lados onde o sol nasce". É o mar, símbolo ambivalente, que tanto representa a morte como dá nova vida através da morte.

Maria Clara Almeida Lucas, "A Cidade Celeste na Hagiografia Medieval Portuguesa", in O Imaginário da Cidade. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian/ACARTE, 1989, p. 82.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

No caminho para a cidade celeste (2). Maria Clara de Almeida Lucas

Vencidas, por virtude das palavras mágicas que os monges lhe haviam ensinado, as provas que os diabos lhe reservavam, impõe-se a Nicolau o regresso no qual o espera nova e última provação: "hūa ponte muy estreita e aguda como cutelo; e por sob ella corria hūu grande rio". O simbolismo da ponte, que permite passar duma para a outra margem do rio, tem a ver directamente com o acesso da terra ao céu, isto é, da contingência para a imortalidade. A ponte revela-se uma passagem difícil: ela é tão estreita que nenhum homem mortal pode, por seus próprios meios, franqueável-la. Recorre então, como neste caso, à ajuda divina: "Jesus Cristo tem mercê de mim". Casos há em que a ponte se alarga ou estreita de acordo com as qualidades ou defeitos de quem a atravessar: larga para os justos, fina lâmina para os ímpios.
Na sua ligação com o céu, a ponte identifica-se com o arco-íris que Zeus lançou para ligar os dois mundos.

Maria Clara Almeida Lucas, "A Cidade Celeste na Hagiografia Medieval Portuguesa", in O Imaginário da Cidade. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian/ACARTE, 1989, p. 81.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

No caminho para a cidade celeste (1). Maria Clara de Almeida Lucas

A visão da cidade celeste [na hagiografia medieval portuguesa] é geralmente antecedida pela descrição do caminho seguido para a atingir e pela celeste [na hagiografia medieval portuguesa das provas vencidas.
Quando ao primeiro ponto, as hagiografias estudadas denunciam a existência de dois caminhos opostos: o santo ora empreende a subida de uma montanha ou serra! como no exemplo de Santo Amaro, ora, tomando o sentido inverso, mergulha nas profundezas da terra e é o caso da descida do poço, na vida de S. Patrício.
Este segundo caso é menos vulgar. Quando se trata de uma catábase o caminho seguido é geralmente por dentro de uma montanha: tal acontece na Epopeia de Gilgamesh. Esta escolha do poço altera o simbolismo da descida pelo acréscimo de semana diferentes. Como cavidade mergulhada no seio da terra, ao mesmo tempo que participa, pela entrada, da superfície e ainda pelo facto de conter  geralmente água ou, quando seco, ar, o poço realiza a síntese dos três elementos: a água, a terra e o ar e simultaneamente das três ordens cósmicas: o céu, a terra e o inferno. É pois um ele entre os vivos e os mortos a cuja morada ele conduz, caminho para o paraíso por via do purgatório, com uma passagem pelo inferno, visão por demais aterradora para não persuadir o viandante a preferir a estrada espinhosa do bem.

Maria Clara Almeida Lucas, "A Cidade Celeste na Hagiografia Medieval Portuguesa", in O Imaginário da Cidade. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian/ACARTE, 1989, p. 79-80.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Caminho, meu belo caminho... que dizes afinal sobre mim? (4) Pierre Sansot

O caminho acaba por ser esquecido. Não é senão o servidor obrigatório de todas as nossas descobertas. Alguns amantes do caminho compreenderam-no, preferindo territórios desolados cuja nudez os não distraía da dureza, da paixão do caminho. A felicidade encontram-na ao contrair calos, ao enfrentar desgraças e experimentar as mudanças de humor.
De facto, a maior parte de nós não sacrifica nem um aspecto nem o outro. Se nos deitamos à estrada, é porque o mundo tinha qualquer coisa para nos oferecer e a oferta não seria mais sumptuosa do que imaginamos. Mas o caminho não é um vulgar instrumento que, depois de usado, pode ser deitado fora. Merece consideração. Torna-se o fio condutor, o caminho interior que permitirá à nossa memória restituir à vida o que foi percorrido dia após dia. Pela minha parte, quando me lembro, começo por ter a imagem de um caminho em vias de se propagar, em seguida ordeno em volta dele paisagens, encontros, como se ele tivesse essencialmente, um papel mobilizador.

Pierre Sansot, Chemins aux Vents. Paris, Éditions Payot et Rivages, 2002, p. 208-209,

domingo, 23 de fevereiro de 2014

Caminho, meu belo caminho... que dizes afinal sobre mim? (3) Pierre Sansot

O caminho, a marcha ininterrupta num caminho, faz-me, às vezes, melancolia. Ao seguir sempre em frente, não presto atenção àquele pequeno ribeiro, àquela criança na pradaria, da forma que o mereciam. De uma certa maneira, conduzia-me como um daqueles homens apressados que me indispõem. Dava mostras de ingratidão e de insensibilidade, em vez da disponibilidade que julgava evidenciar. Neste sentimento, havia algo ainda de mais patético. A condição humana surgia-me em toda a sua luz e em toda a sua crueza: um viajante que se não possa nunca fixar, e ao qual, um dia, o deslumbramento da sensibilidade será recusado.
Que relações tece o caminho com as paisagens, quando se inscreve num longo passeio? Temos de fazer questão de não as ignorar. Em primeiro lugar, porque, libertos da pressão do tempo e de qualquer tarefa, dispomos do tempo livre para as inspeccionar, as contemplar. Por outro lado, elas remetem constantemente para a nossa memória. São as quintas, as colinas, os edifícios, por vezes o oceano, que assumem a função de guiar dos nosso passos. O nosso corpo transmite de imediato essa informação, sustendo a respiração ou respirando à vontade, encolhendo-se ou curvando-se. É assim que nasce e nos acompanha uma segunda forma de paisagem, a que é repercussão quase inconsciente e mais próxima do nosso organismo. E, aliás, que satisfação tiraríamos do facto de andarmos, sem a diversidade de informações confusas que nos assaltam segundo a segundo?

Pierre Sansot, Chemins aux Vents. Paris, Éditions Payot et Rivages, 2002, p. 207-208.

sábado, 22 de fevereiro de 2014

Caminho, meu belo caminho... que dizes afinal sobre mim? (2) Pierre Sansot

No campo, o caminho dispõe-me à solidão e procura-a para mim. Raramente me associo a outros caminhantes. Aceito, ao longo do passeio, companheiros ocasionais que me deixarão quando lhes aprouver.  Enquanto tagarelamos, afastamo-nos deste caminho que se me apresenta como uma obra agradável, mas grave. Desejaríamos ser interrompidos no decurso de uma leitura ou de um concerto?
Que destino reservar aos desconhecidos, às pessoas que entrevimos numa peregrinação, que é o contrário duma viagem pré-organizada no decurso da qual foram preparadas as cerimonias de acolhimento, os cenários. O vagabundo, já o escrevi, inquieta, não por ser um ladrão de galinhas ou de pneus, mas por ser ladrão de terra, de intimidade, sempre que ousa dirigir o seu olhar para um conjunto que não lhe pertence, que não adquiriu nem construiu. As alegrias do pateta alegre, do homem desocupado, indiferente ao dia de amanhã, irritam os que labutam e sofrem.
Naturalmente outros encontros acontecem com vagabundos despreocupados. Há um sério risco de formar, paradoxalmente, um círculo tão fechado quanto o dos frequentadores habituais de um café, ou dos co-proprietários de um loteamento, ou seja, de nos perdemos na narrativa de proezas reais ou imaginárias e de diferir o momento de retomar a estrada. Tanta gente se mete à estrada (não é o caso dos vagabundos), pára num lugar e por lá fica.

Pierre Sansot, Chemins aux Vents. Paris, Éditions Payot et Rivages, 2002, p. 206-207.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Caminho, meu belo caminho... que dizes afinal sobre mim? (1) Pierre Sansot

Desejamos estar seguros acerca dos nossos caminhos e uma tal certeza traz-nos a paz. A amizade não se alimenta da confiança? No entanto, essa fidelidade, se fosse absoluta, inquietar-me-ia e nela veria uma marca de servidão, talvez de servilismo. O caminho é certo que aumenta o nosso domínio do espaço e consequentemente do mundo, e nós congratulamo-nos com isso. Uma coisa, uma relação pertence-me ou poderá pertencer-me, se existir um caminho que me conduza até ela. Em virtude do mesmo movimento, um ser ameaçado que gostasse de dispor de terrenos pantanosos em volta da sua casa, um espaço inóspito, sonha com uma casa que não figure nas cartas – numa insularidade completa.
É todavia necessário ser bem ingénuo para ignorar a vida secreta dos caminhos, e bem arrogante para acreditar no seu total controlo. Quem quereria um caminho incapaz de se dissimular, de nos desafiar, de nos ignorar? Grande numero de narrativas relatam essa incerteza: onde me levará este caminho? Será mesmo um caminho? Não será dissimulado ao ponto de multiplicar os sinais ilusórios? E que glória será a minha se conseguir triunfar sobre os seus embustes? O termo “dissimulado” já não me agrada. Prefiro chamar-lhe traquinas, orgulhoso da sua independência, apostado em não se abandonar, como uma rapariga fácil.

Pierre Sansot, Chemins aux Vents. Paris, Éditions Payot et Rivages, 2002, p. 205-206.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Um relato deslavado e incorrrecto das minhas viagens. Jonathan Swift

Carta do Comandante Gulliver a seu primo Sympson

Espero que estarás disposto a reconhecer publicamente, ainda que to peça, que me pressionaste, constante e frequentemente, para que publicasse um relato deslavado e incorrecto de minhas viagens, com a indicação de recorrer aos serviços de algum jovem universitário de Oxford ou Cambridge para lhe dar ordem e corrigir o estilo, como o fez o meu primo Dampier, seguindo os meus conselhos, com o seu livro intitulado Viagem à Volta do Mundo. Mas não me lembro se te dei autorização para omitir tudo isto; e muito menos que se efectuassem inserções. Por conseguinte, no que respeita a estas últimas, nego ser o autor delas, especialmente, no que se refere a um parágrafo acerca de Sua Majestade a rainha Ana, de piedosíssima e gloriosa memória, a quem dediquei uma reverência e estima superiores às de qualquer outro mortal. Mas tu ou o revisor deveriam ter tido em conta que, como esta não era a minha natural inclinação, não era honesto elogiar qualquer animal da nossa natureza perante o meu amo houyhnhnm. E, além disso, este facto é completamente falso; pelo que sei, tendo permanecido em Inglaterra durante parte do reinado de Sua Majestade, a rainha, ela governou com a ajuda de um primeiro-ministro; para ser mais preciso, com a de dois consecutivamente. O primeiro foi lorde Godolphin e o segundo lorde Oxford, de modo que me fizeste dizer o que não era. De igual modo, na relação da Academia de Inventores e em diversos passos do meu discurso a meu amo houyhnhnm, omitiste, separaste ou alteraste alguns aspectos circunstanciais, de tal forma que pouco me reconheço nele como autor. Quando, faz já muito tempo, sugeri em carta algo sobre isto, tiveste a amabilidade de responder-me que tinhas medo de ofender alguém. Os que detêm o poder submetiam a imprensa a apertada vigilância e estavam inclinados, não só a interpretar, mas também a castigar qualquer coisa que tivesse um aparente significado sedicioso ou fustigante.
Mas, por favor, como pode ser que o declarado noutro reino se aplique a qualquer dos yahoos que ora se diz que governam a manada? Especialmente numa época que eu não considerava uma desgraça nem temia viver sob a sua obediência. Acaso não tenho todos os motivos para queixar-me ao ver esses mesmos yahoos transportados numa carruagem puxada por houyhnhnms, como se os primeiros fossem as criaturas racionais e os segundos os brutos? E, na verdade, foi esse o motivo por que dali me afastei, para evitar a contemplação de espectáculo tão monstruoso e horrendo.
Isto é o que considerei adequado comentar quanto a ti e à confiança que em ti depositava.
Queixo-me agora da minha própria e enorme falta de prudência por ter aceite os avisos e sofismas provenientes de ti e de outros, diametralmente opostos à minha opinião, de permitir a publicação de As Viagens. Recorda-te, por favor, com que frequência te pedi para considerares, quando aduziste constantemente razões de bem público, que os yahoos eram uma raça de animais absolutamente incapazes de emenda mediante ordens ou exemplos. E verificou-se que assim era; porque em lugar de contemplar uma total paralisação de todos os excessos e corrupções, pelo menos nesta pequena ilha, tal como seria legítimo esperar, eis que, após seis meses, não pude comprovar que o meu livro tenha produzido um só dos efeitos que previra. Ansiei por que me desses a conhecer por escrito quando se tinham abolido os partidos ou facções, quando os juízes tinham actuado com justiça e discernimento, os demandantes com humildade, honestidade e com alguns indícios de bom senso, quando na praça de Smithfield se tinham queimado avantajadas pirâmides de livros de direito. Quando a educação da juventude nobre mudara por completo, os médicos desterrados, as yahoos femininas abundantes de virtude, honra, verdade e bom senso; as reuniões de escárnio e maldizer, parlamentares ou privadas, banidas e extintas; o engenho, méritos e saber recompensados; todos os que aviltam a máquina de impressão com a sua má prosa ou verso condenados a nada mais comer que as bolas de algodão (com que os impressores dão tinta às pranchas) e a matar a sede com a sua própria tinta.
Graças aos teus esforços, contava fundamentalmente com estas e outras mil reformas; e, com efeito, estas deduziam-se com clareza dos conselhos contidos no meu livro. E deve reconhecer-se que sete meses era tempo suficiente para emendar todos os vícios e loucuras a que os yahoos estão sujeitos se tivessem possuído a natural disposição, ainda que em mínima quantidade, para a virtude ou para a sabedoria. Até à data não encontrei nas tuas cartas nenhuma das respostas que esperava; pelo contrário, estás a avolumar este assunto com libelos, notas, reflexões, memorandos e adendas em que me vejo acusado de criticar as gentes dos grandes estados, de degradar a natureza humana (ainda que tenham a desfaçatez de assim considerá-la) e de injuriar o sexo feminino. Verifico, também, que os autores desses panfletos não se põem de acordo entre si; alguns não me atribuem a autoria das minhas próprias viagens, enquanto outros me consideram autor de livros com os quais nada tenho a ver.
Verifico, igualmente, que o teu impressor foi muito pouco cuidadoso: confundiu as horas, datou mal as minhas diversas viagens e regressos a casa; não indicou tão-pouco o verdadeiro mês, nem o dia do mês. E informam-me que, uma vez publicado o livro, ó manuscrito original foi destruído. Não tenho cópia alguma em meu poder. No entanto, escrevi algumas correcções que podes interpolar, no caso de se publicar uma segunda edição. E, apesar de tudo, não posso opor-me a elas: deixarei o assunto nas mãos dos meus judiciosos e ingénuos leitores para que o solucionem a seu gosto.
Chegaram aos meus ouvidos rumores de que alguns dos nossos yahoos marinheiros encontram erros nas minhas expressões de marinharia. Dizem que não é adequada nalguns passos, nem está actualmente em voga. Quanto a isso, nada posso fazer. Nas minhas primeiras viagens juvenis recebi ensinamentos de velhos lobos do mar e aprendi a falar como eles.
Mas desde então descobri que os yahoos marinheiros são propensos, como os de terra, a confundir-se com as palavras; os segundos mudam-nas todos os anos. Pelo que recordo, em cada um dos meus regressos ao meu país, a forma de falar alterava-se, ao ponto de dificilmente os entender. E verifiquei quando um yahoo chegou de Londres para, por curiosidade, fazer uma visita a minha casa que não somos capazes de exprimir os nossos pensamentos de forma inteligível.
Se a crítica dos yahoos pudesse, de algum modo, afectar-me, muito fundamento teria para queixar-me de que alguns se atrevem a opinar que os meus livros são mero produto da minha própria imaginação; e chegaram 'mesmo a sugerir que os houyhnhnms e os yahoos são tão irreais como os habitantes da Utopia.
Devo, em verdade, confessar, no que respeita aos habitantes de Lilliput, Brobdingnag (assim deveria escrever-se esta palavra, e não Brobdingag, como erroneamente se faz) e Laputa; nunca chegou ao meu conhecimento que um yahoo seja tão presunçoso ao ponto de pôr em dúvida a sua existência ou os respectivos factos que relatei: a convicção da sua veracidade invade imediatamente o leitor. E existem menos aparências de probabilidades no meu relato dos houyhnhnms ou dos yahoos quando, no que respeita aos segundos, há muitos milhares nesta cidade que só se diferenciam dos seus néscios irmãos do país dos houyhnhnms por balbuciarem umas palavras ou não andarem nus?
Não escrevi procurando a sua aprovação mas para que se corrigissem. O aplauso universal de toda a raça terá para mim menos importância que o relincho dos dois degenerados houyhnhnms do meu estábulo. Com estes, apesar da sua evidente degeneração, ainda aprendo algumas virtudes, sem mácula de vício.
Atrevem-se estes miseráveis animais os yahoos a pensar que a minha degeneração chega ao ponto de defender a minha veracidade?
Apesar de ser yahoo, é bem sabido em todo o país dos houyhnhnms que, graças aos ensinamentos e exemplos de meu ilustre amo, fui capaz em dois anos (ainda que confesse que com muitíssima dificuldade) de despojar-me dos hábitos infernais de mentir, jogar às cartas, enganar e falar com ambiguidade, tão profundamente enraizados em todas as almas da minha espécie, em especial nos europeus.
Tenho outras queixas a apresentar nestas vexatórias circunstâncias, mas não quero aborrecer-me nem aborrecer-te mais. Devo confessar sinceramente que, desde o meu último regresso, diversas corrupções da minha natureza yahoo reviveram em mim ao conversar com alguns da tua espécie e, em particular, com os da minha própria família, por necessidades inelutáveis. De outro modo nunca teria intentado um projecto tão absurdo como o de reformar a raça yahoo neste reino; embora actualmente já tenha abandonado por completo todos estes projectos por quiméricos.
2 de Abril de 1627
Lemuel Gulliver

Travels into Several Remote Nations of the World, in four parts. By Lemuel Gulliver, first a surgeon, and then a captain of several ships. London, printed for Benj. Motte, 1726.

Usou-se aqui a tradução de autoria não identificada incluída na edição digital desta obra [http://www.livros-digitais.com].
Há várias edições em português desta obra.
Possuo a da Relógio d'Água, Lisboa, 2010, tradução de Luzia Maria Martins.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Gulliver, como outros viajantes, é demasiado minucioso. Jonathan Swift

Nota do editor

O autor destas viagens, senhor Lemuel Gulliver, é meu amigo íntimo desde há muitos anos; estamos também ligados por alguns laços familiares pelo lado materno. Há aproximadamente três anos, o senhor Gulliver, que estava já a fartar-se da multidão de curiosos que invadia a sua casa de Redcriff, comprou um pequeno terreno com uma agradável vivenda perto de Newark, no condado de Nottingham, seu condado natal. É ali onde actualmente vive, reformado e rodeado pela estima dos seus vizinhos.
Ainda que o senhor Gulliver tenha nascido em Nottingham, onde residia o pai, ouvi-lhe dizer que a família provinha de Oxford. Comprovei isso de certa forma quando observei no cemitério de Banbury (Oxford) diversos túmulos e jazigos com o nome de Gulliver.
Antes de abandonar Redcriff entregou-me o manuscrito da obra que aqui publicamos, dando-me a liberdade de dispor dele a meu bel-prazer, Por três vezes o examinei com atenção. O estilo é simples e sem artifícios. E o único defeito que lhe acho é que o autor, como outros viajantes, pormenoriza em excesso. O conjunto manifesta grande dose de veracidade. Com efeito, esta é uma qualidade tão notável neste autor que, ao afirmar-se algo, converteu-se numa máxima, entre os vizinhos de Redcriff, dizer: «É tão verdadeiro como se o senhor Gulliver o tivesse dito.»
Sigo a recomendação de diversas personalidades a quem mostrei o manuscrito com autorização do autor e atrevo-me a apresentá-lo agora ao público. Espero que seja, pelo menos durante algum tempo, um entretenimento mais proveitoso para os jovens nobres que os assuntos dos escritorzecos políticos e partidários.
Este volume teria pelo menos o dobro do tamanho se não tivesse decidido eliminar inúmeros passos relativos a ventos e a marés, explicações sobre variações, ângulos e cartas marítimas, as pormenorizadas descrições de como manobrar um barco numa tempestade.
O mesmo fiz para a relação das longitudes e latitudes. Tenho motivos para temer que o senhor Gulliver possa estar um pouco aborrecido com tudo isso. Mas era meu propósito adequar esta obra à capacidade média dos leitores. No entanto, se a minha ignorância em assuntos de marinharia me levou a cometer alguns erros, toda a responsabilidade deve recair sobre mim. E se qualquer viajante deseja consultar a obra integral, tal como saiu da pena do autor, sentir-me-ei muito feliz em comprazê-lo,
No que respeita a outros pormenores sobre o autor, encontrá-los-á o leitor nas primeiras páginas deste livro.

Richard Sympson


Travels into Several Remote Nations of the World, in four parts. By Lemuel Gulliver, first a surgeon, and then a captain of several ships. London, printed for Benj. Motte, 1726.

Usou-se aqui a tradução de autoria não identificada incluída na edição digital desta obra [http://www.livros-digitais.com].
Há várias edições em português desta obra.
Possuo a da Relógio d'Água, Lisboa, 2010, tradução de Luzia Maria Martins.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Irei longe, bem longe, como um cigano. Arthur Rimbaud

Sensação

No azul das tardes de verão, irei pelos caminhos,
Tracejado pelos trigos, pisar a erva tenra:
Sonhante, sentirei a meus pés a sua frescura.
Deixarei o vento banhar-me a cabeça nua.

Não falarei - pensarei em nada:
Mas um amor infinito subir-me-á na alma, e eu
Irei longe, bem longe, como um cigano, feliz
Pela Natureza -, na companhia da mulher sonhada.

Março de 1870

Arthur Rimbaud, O Rapaz Raro, Iluminações e Poemas. Tradução de Maria Gabriela Llansol. Lisboa, Relógio d'Água, 1998, p. 137.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Vão à procura de si. Teolinda Gersão

E nada tínhamos a ver com os turistas. Éramos diferentes. Viajantes.
Os turistas vão à procura de lugares para fugirem de si próprios, da rotina, do stresse, da infelicidade, do tédio, da velhice, da morte. Vêem os lugares onde chegam apenas de relance e não ficam a conhecer nenhum, porque logo os trocam por outros e fogem para mais longe. Os viajantes vão à procura de si, noutros lugares. Que ficam a conhecer profundamente porque nenhum esforço lhes parece demasiado e nenhum passo excessivo, tão grande é o desejo de se encontrarem.
As agencias de viagem e os turistas só se interessam, obviamente, pelas cidades reais. Os viajantes preferem as cidades imaginadas. Com sorte, conseguem encontrá-las. Ao menos uma vez na vida.

Teolinda Gersão, A Cidade de Ulisses. Lisboa, Bertrand, 2013, p. 34-35.

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Na desfocada penumbra...Fernando Pinto do Amaral

Levantei-me muito cedo,
eram talvez sete e meia,
e ainda quase a medo
veio-me então à ideia

que era dia de viagem.
Arranjámos-nos depois,
havia pouca bagagem,
e saímos logo os dois.

Fui levar-te ao aeroporto
e na espuma da manhã,
ao volante, ia absorto
a pensar que a vida é vã

sem o teu corpo ao meu lado,
sem a certeza de um beijo
quando acordo estremunhado
e entre os lençóis mal vejo

na desfocada penumbra 
da primeira luz do dia
esse olhar que me deslumbra
e a cada instante me guia

os gestos inconscientes,
os passos das à toa
por cidadãos tão ausentes
como agora está Lisboa.

Mas pronto, fiquei sozinho:
lá vai o teu avião
a seguir o seu caminho,
conduzido pela mão

que dá rumo à nossa vida.
Queria agarrar-lhe uma asa,
esquecer-me da despedida
e não regressar a casa.

Fernando Pinto do Amaral, Poesia Reunida, 1990-2000. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2000, p. 287-288.

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Passei horas na Versailles a observar o "ballet" de velhas gulosas. Geneviève Brunet

Pâtisseries à Lisbonne
A Lisbonne, la pause-café est un rituel, la pâtisserie quasi sacrée. Si l’on veut découvrir l’âme de la ville, il faut passer par le sucré ! De l’intelligentsia aux plus humbles, tout le monde se croise au comptoir pour grignoter des gâteaux. Souviens-toi du goût des « pastéis de nata », ces petits flans crémeux à la pâte feuilletée caramélisée. Une tuerie. Tu m’avais traîné à Bélem, à côté du monastère des Hiéronymites où les religieuses avaient inventé cette douceur afin d’obtenir des ressources pour faire subsister leur ordre. La petite boutique créée en 1837 était toujours là. Mais nous avions préféré la pâtisserie Versailles où le fondateur, Salvador José Antunes, n’a pas hésité à mélanger l’Art Nouveau et le Grand Siècle. Une sorte de pâtisserie dans la pâtisserie. Nous y avions passé des heures à observer le ballet des vieilles dames gourmandes. Repus, nous parcourions les ruelles du Bairro Alto et les boutiques de la Baixa, observant le fleuve depuis des placettes ombragées, escaladant les sept collines à coup de tram, écoutant le fado s’écouler des fenêtres, cédant au charme de cette ville un peu provinciale. Au soir, le retour au LX, cet élégant boutique hôtel intime qui cultive l’esprit de la ville, prolongeait l’immersion. Notre chambre à l’étage «Pessoa», avec son trompe-l’œil de bibliothèque à la tête du lit et ses murs bleu azulejo, berçait nos nuits de rêves sucrés.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Dessa viagem guardou poucas recordações (2). Anaïs Ninn

Dessa viagem guardou Elena poucas recordações, a não ser uma sensação de calor por todo o corpo, como se tivesse bebido uma garrafa inteira de um bom Borgonha, e bem assim um sentimento de raiva por ter descoberto um segredo que até ali todos tão cruelmente lhe haviam ocultado. Descobriu, com efeito, que nunca sentira as sensações descritas por D. H. Lawrence, e que tais sensações eram em dúvida alguma a explicação para aquela sua expectativa. Mas havia também outra coisa de que ela agora estava consciente. Uma coisa que sempre a mantivera numa permanente atitude de defesa contra qualquer possível experiência, um desejo de fuga que a arredava da sensualidade e do seu consequente desabrochar. Estivera várias vezes a pontos de ceder, mas sempre acabara por se refrear. As culpas atribuía-as a si própria, por tudo quanto perdera e ignorara.
Era a mulher submersa no livro de Lawrence, ainda metida para dentro, que enfim se oferecia, receptiva, como se tivesse sido despertada por mil carícias e se preparasse para a chegada de alguém.
Foi uma mulher nova que em Caux desceu do comboio.

Anaïs Ninn, "Elena", in Delta de Vénus. Cascais, Editora Bico de Pena, 2006, p. 97-98.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Sempre que viajava...(1). Anaïs Ninn

Enquanto esperava pelo comboio para Montreux, Elena ia observando os passageiros que a rodeavam. Sempre que viajava, despertava nela aquela curiosidade, aquela esperança, aquela ansiedade que se costuma sentir no teatro ao subir o pano.
Descobriu um ou dois individuos com quem teria gostado de falar e perguntou a si própria se eles iriam apanhar o mesmo comboio que ela, ou se estariam ali só a acompanhar outros passageiros. Os seus desejos eram vagos, impregnados de poesia. Se lhe perguntassem de chofre o que esperava, teria respondido: Le merveilleux. Era um desejo que não se localizava em nenhuma parte do corpo. A reflexão que haviam feito acerca dela, num dia em que acabava de criticar um escritor que encontrara, era assaz verdadeira: "Você não é capaz de vê-lo como ele na realidade é, pois não é capaz de ver ninguem tal qual é. Ficará decepcionada, porque você está sempre à espera de alguém".
Sim, estava sempre à espera de alguém - todas as vezes que a porta se abria,modas as vezes que ia a uma soirée, a uma reunião, todas as vezes que entrava num café, num teatro.
Nenhum dos indivíduos que ela escolhera para companheiro ideal de viagem subiu para o comboio. Abriu então o livro que tinha à mão. Era O Amante de Lady Chatterley.

Anaïs Ninn, "Elena", in Delta de Vénus. Cascais, Editora Bico de Pena, 2006, p. 97.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

A sua viagem tem um fim ou constitui um fim em si própria? Jean-Jacques Marie


Há viagens e viagens

As estadas em Paris de Marx colocam antes do mais um problema relativamente ao título desta obra. Que é uma viagem? O [dicionário] Petit Robert responde: "Deslocação de uma pessoa que se dirige a um local bastante afastado". Remete para as palavras "cruzeiro, travessia, digressão". O Larousse em dois volumes diz a mesma coisa: "Deslocar-se para fora da sua região ou do seu país. Ida e vinda de um lugar para o outro transportando qualquer coisa". [...]
O Petit Robert ilustra o sentido da palavra, entre elas "gente de viagem", a única que o Larousse apresenta aos seus leitores. A viagem seria pois a primeira característica do boémio e este ultimo o protótipo do viajante. Mas com que objectivo se desloca a "gente de viagem"? Ou melhor, a sua viagem tem um fim ou constitui um fim em si própria?
Todas estas definições me deixam perplexo. O prisioneiro que, de manhãzinha, partia da prisão de Saint-Martin de Ré, agrilhoado, para se juntar ao inferno de Cayenne, deslocava-se para um local afastado; da mesma forma que o soldado que partia para a guerra, com o seu equipamento às costas. Podemos qualificar como "viagem" estas deslocações? Imaginemos que o prisioneiro disse parto em viagem para Cayenne, ou que  o soldado enviado para combater designa pela palavra viagem o percurso da casa lido centro de mobilização para a frente de guerra. Não passará pela cabeça de ninguém desejar-lhes, no momento da partida, boa viagem. A menos que demos à palavra o sentid irónico que que lhe atribui a frase citada pelo [dicionário] Littré no final da entrada [dedicada ao termo "viagem"]: Antigamente em certos conventos, uma 'viagem a Jerusalém' designava a prisão perpétua a que os religiosos condenavam um dos seus companheiros. A frase era usada quando se alguém perguntasse pelo frade desaparecido.
É certo que Marx não se deparou com situações semelhantes; ele até evitou as provações do serviço militar. E apesar de ter sido uma vez, e 1849, interpelado por soldados, foi mandado em paz em vinte e quatro horas. Mas a maior parte das suas viagens corresponderam não a uma vontade de ver um outro país, mas a uma decisão política, a uma necessidade de tratar da saúde, ou uma obrigação: foi várias vezes expulso da Alemanha, da Bélgica, da França, e as viagens que teve de fazer tiveram um carácter forçado. Quase todas as viagens dos nove últimos anos da sua vida foram determinadas por razões médicas e por conseguinte por um constrangimento que, mesmo que interiorizado e personalizado, não perdeu o seu carácter de imposição.

Karl Marx: le Christophe Colomb du Capital. Textes choisies et presentés par Jean-Jacques Marie. Collection "Voyager avec...". Paris, La Quinzainne/Louis Vuitton, 2006, p. 13-14.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Viagem em Itália. Roberto Rossellini


Viaggio in Italia, para quem nunca o tenha visto, o que é? Como Sunrise de Murnau, como O Convento de Oliveira, como Lucky Star de Borzage ou como Os contos da Lua Vaga de Mizoguchi, é a história da separação e da reconciliação de um casal. O casal Joyce, casal inglês de meia-idade (trinta e muitos, quarenta e poucos) bem instalado na vida, que vem à Itália vender uma propriedade que herdara de um tio chamado Homer (Joyce e Homero podem ser nomes casuais, podem não o ser). Casal são-no, porque são casados. Casal não o são, porque estão razoavelmente fartos um do outro. A viagem - rumo a Nápoles e nos arredores de Nápoles - dura sete dias (número mágico). Alex, o marido (George Sanders), namora por aqui e por ali, engata (ou é engatado) por uma pega, aborrece-se de morte. Katherine, a mulher (Ingrid Bergman) faz muito turismo: Museu Arqueológico de Nápoles, ruínas de Cuma (antro da Sibila), Templo de Apolo, Vesúvio, Pompéia, a solfatara de Pozzuoli. Recorda um poeta que a amou e morreu novo e tuberculoso, finge ciúmes do marido, farta-se com ele e dele. Ao sétimo dia, a propósito de uma discussão absurda sobre o Bentley deles, decidem divorciar-se logo que voltem à Inglaterra. Horas depois, o carro em que viajavam, muito calados, é forçado a parar porque uma procissão atravessa a estrada. Saem, cada um de sua vez, para ver o que se passa. A certa altura, a multidão desata a gritar “milagre” a propósito do tal paralítico. Na confusão, cada um deles é empurrado em direções opostas. Katherine chama pelo marido. Quando este a consegue alcançar, abraçam-se e juram nunca mais se separar.
Nem Katherine nem Alex parecem pessoas muito interessantes. Nada lhes acontece de muito particular.Qualquer pessoa está mesmo a ver que divorciar-se é o que podem fazer de melhor. Uma procissão, o “ave” de Fátima e os dois nos braços um do outro a jurar amor eterno. Milagre da Virgem que protege o santo matrimônio? Quem nunca tinha visto e só isto ler, percebe facilmente as reações da época.
Só que dizer isto ou não dizer nada é praticamente a mesma coisa. Não porque a história não seja isto, mas porque sob isto, ao lado disto, ou sobre isto (e nenhuma das preposições é boa) se passa tudo o que é essencial e não é traduzível em palavras.
Não vou citar nenhum exemplo dos mais célebres, como a perturbação de Katherine face aos nus masculinos do Museu de Nápoles, o passeio solitário dela ao Templo de Apolo, a “ionização” na solfatara, com o fumo e o cheiro a sufocá-la, o esqueleto visto nas catacumbas, a descoberta, durante as escavações em Pompéia, dos corpos calcinados de um casal abraçado, há dois mil anos abraçados. Não vou falar da confusão das ruas de Nápoles ou de Capri, das mulheres grávidas que se cruzam constantemente com Katherine, das zaragatas conjugais a que assistem e que tanto chocam reservados ingleses.
Vou referir-me apenas à seqüência inicial, quando, no Bentley, Katherine e Alex se dirigem para Nápoles. Primeiro, um diálogo, pedagogicamente concebido, que nos dá todas as informações úteis: quem são eles, onde se dirigem, o que vieram fazer à Itália. Depois, o marido adormece e percebemos que é a mulher quem guia. O marido acorda e propõe à mulher trocar de lugar. Em vez do corte e novo plano do carro com as novas posições, assistimos à troca toda, com toda a minúcia. No segundo minuto do filme, segunda paragem: agora é uma manada de bois que atravessa a estrada e os impede de prosseguir. Irritação de Alex, que já comentara que as estradas em Itália são um perigo. Segue-se uma bifurcação: uma seta indica Nápoles para a esquerda e Latina para a direita. O carro vira à esquerda (já sabíamos que o destino era Nápoles), mas a câmera vira-se para a direita, como se o outro caminho fosse o bom e eles o não soubessem. Pouco depois, Katherine faz uma expressão de horror: “Que é isto? Sangue?” E Alex respondeirônico, que foi  um mosquito que seesborrachou no vidroFalam dos perigos da malária.
Aparentemente, nada se passou de particularmente interessante. Mas, nesses cinco minutos de filme, quem for capaz de ver, viu o essencial. A viagem é conduzida pela mulher, como sempre o será ao longo do filme, porque é ela quem vê quase tudo o que o marido não vê, como é ela quem o chama no final. Mas ela sem ele não existe. Por isso, ele tem de conduzir também e tudo o que lhe acontece, depois, é tão fio condutor quanto o que lhe acontece a ela. Em cada bifurcação, há sempre duas possibilidades. Seguir o que está predeterminado implica deixar aberto o desconhecido. A qualquer plano ou ordenação sobrepõe-se a desordem e o imprevisto: bois não querem saber de Bentleys e podem parar - ou atrasar - uma viagem. Uma mancha de sangue pode não ser uma tragédia mas pode não ser tão banal como parece. Na vida não há símbolos, há sinais. A cada momento, cada sinal.
E é a acumulação de todos esses momentos e de todos esses sinais que, a cada momento e a cada sinal, vai minando aquele homem e aquela mulher que parecem fatalmente seguir numa outra direção (a ruptura) e não menos fatalmente estão a seguir noutra (a redescoberta). Quando perdem o pé (o carro, a casa, a direção, a estrada), tudo o que de vital e mortal se acumulou neles explode, tão irracional e tão racionalmente, como a fé da multidão no milagre da Virgem. E é essa explosão - essa erupção, essa ionização, se quisermos ficar ao pé dalgumas imagens do filme - que os atira um para o outro, no mesmo abraço dos cadáveres de Pompéia. Talvez que eles também - que sabemos nós? - não estivessem a fazer amor, nem mesmo se amassem. Talvez que, surpreendidos pela erupção do Vesúvio, se tivessem agarrado para não morrerem sós. Só que dois corpos juntos, juntos mesmo, dois mil anos ou dois segundos, são o milagre total. No Evangelho de Pseudo-Tomé há uma variante, mais profunda e mais certeira, da conhecida passagem dos sinópticos em que se diz que a verdadeira fé move montanhas. Em vez da passagem: “Se tiveres a verdadeira fé e disseres àquela montanha move-te, a montanha mover-se-á”, diz-se: “Se um homem e uma mulher viverem em verdadeira paz um com o outro e um deles disser àquela montanha move-te, a montanha mover-se-á.” Em vez da fé, a caridade. É o cerne do cinema de Rossellini.
Nem eu nem ninguém vos pode jurar que, regressados ao carro ou a casa, Alex e Katherine não recomecem as quezílias. Mas o milagre aconteceu. Não é bom que o homem ou a mulher estejam sós. Viaggio in Italia, como disse Rohmer, é um drama com três personagens. O terceiro é Deus. E em Viaggio in Italia quem O não vir não vê nada.
É só um filme? Precisamente.

João Bénard da Costa
http://www.focorevistadecinema.com.br/FOCO1/benard-viagem.htm

Ficha técnica:
Título original: Viaggio in Italia, Itália, França, 1954
Realização: Roberto Rossellini
Ficha artística: 
Ingrid Bergman: Katherine Joyce
George Sanders: Alexander ‘Alex’ Joyce



segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Cidade imaginária (2)

Ana e Alice

Ana marcara o jantar para a Brasserie Balzar, na Rue des Écoles. Esta preferencia tinha que ver, como me explicara noutra ocasião, com o facto de aquele ter sido um pouso habitual de Mário Soares no seu exílio em Paris.
Há mais de um ano que não nos víamos e a conversa principiou pelas actividades em que estávamos envolvidos. Depois, foi-se afastando da esfera pública e acercando-se de temas mais pesseoais. Era sempre assim. Conhecemo-nos desde a adolescência (de facto, desde os 14 anos dela, 17 meus) e, apesar dos interregnos de relacionamento, lidamos bem com a partilha da intimidade.
Nos últimos anos, multiplas perdas afectivas abateram-se sobre Ana. Entre elas, a de Alice. Ana telefonara-me, em Lisboa, no dia das cerimonias fúnebres, logo após a incineração do corpo, mas pouco faláramos então sobre a morte de Alice.
Alice era uma mulher de opiniões desassombradas embora por vezes um pouco ingénuas. Os laços de simpatia, confiança e cordialidade que entre nós se estabeleceram tiveram evidentemente a Ana como centro, mas não foram circunstanciais. Um dia, Alice propusera-me, a troco de lições de Latim, História, Filosofia e Organização Política, que ajudassem Ana a preparar os seus exames de 7º ano, um generoso pagamento. Esta espécie de perceptorado permitia-me ainda beneficiar de uma clausula não explicita: um convite para jantar em dias de lição. Foi com esta ajuda imprevista e generosa que fiz face aos encargos com o meu primeiro ano na Faculdade de Letras de Lisboa.
Ana emigrou para Paris com pouco mais de vinte anos. Enfrentou situações difíceis, que não esquece, e, se hoje conta com uma posição de relevo na produção cultural francesa, deve-a à resiliência que adquiriu e às capacidades e competências que exercitou e de que deu provas.
Contou-me os últimos anos de Alice, as sequelas do envelhecimento, relatou as visitas que mutuamente se faziam, em Paris e Lisboa. Alice gostava de Paris, que mapeara com lugares de eleição, ruas, edifícios, outras marcas afectivas.
Que fizeste da cinzas de Alice? - perguntei a Ana. - Trouxe-as comigo e durante algum tempo estiveram em  minha casa, até decidir que fazer com elas. Achei que era nesta cidade que as devia depositar. Percorri todos os locais que ela amava em Paris, um após outro, e por todos eles distribui um pouco do pó de Alice.

[Texto publicado  no semanário Região de Leiria, edição de 6 de Fevereiro de 2014]

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Viajantes. Paula Rego

Paula Rego, Travellers, 1987

sábado, 8 de fevereiro de 2014

A lentidão das viagens exaspera-me. Francisco Keil do Amaral

Autobiografia [do Arq. Francisco Caetano Keil Coelho do Amaral; anterior a 1940]

Nasci em Lisboa aos 28 de Abril de 1910, justamente, e por infelicidade minha, no momento em que os meus pais se encontravam ausentes em viagem pelo estrangeiro.
Devido a esse facto, e por não ter junto de mim quem cuidasse do meu sustento e vestuário, fui forçado a iniciar a luta pela vida desde muito novo. Até aos dois meses ainda consegui aguentar-me em casa de uma velha míope que me tomava por um gato, me dava abundantes carapaus, mas o logro foi descoberto e tive de dar novo rumo à existência. Dada a minha falta de habilitações profissionais (perfeitamente natural numa criança de tão tenra idade) vi-me obrigado a escolher  uma das raras ocupações que as não exigiam - descarregador do porto.  Nessa verdadeira escola de trabalho e coragem passei a infância e são dessa época as maiores e mais doces recordações da minha vida: uns sacos enormes de açúcar com que tinha de alombar.
Aos 15 anos um generoso senhor encontrou-me a decorar com desenhos apropriados um muro pintado de fresco, e ficou impressionado com a minha vocação artística. Resolveu educar-me à sua custa e meteu-me num colégio onde me esforcei por corresponder àquela prova de interesse e magnanimidade.
Completei a instrução primária em sete anos e o meu pródigo benfeitor presenteou-me com uma viagem à Itália onde me demorei algum tempo na contemplação de tantas e tão extraordinárias obras de arte. Não vi o papa.
Após alguns estudos liceais ingressei na Escola de Belas Artes, de onde saí pouco depois para ir buscar o sobretudo de que me tinha esquecido.
A minha vocação afirmou-se amplamente e logo no primeiro concurso artístico a que concorri ganhei o prémio das famílias numerosas.
Após os estudos regulamentares diplomei-me em Arquitectura e iniciei uma vida profissional cheia de sucessos, que a minha habitual modéstia não me permite enunciar.
Moro longe da cidade e a lentidão das viagens exaspera-me. Para matar o tempo, resolvi escrever. No entanto, já escrevi mais de 300 páginas e o tempo continua vivo.
Espero que o futuro continue a sorrir-me e que estas notas biográficas sirvam de incentivo aos jovens de todo o Mundo. Como muito bem diz o Diário de Lisboa, "a virtude e a perseverança são a riqueza dos pobres e a pobreza dos avaros".

Keil do Amaral: Humor de Arquitecto. Compilação, introdução e notas de Pitum Keil do Amaral. Lisboa, Argumentum, 2010, p. 17.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Viajante. Paula Rego

Paula Rego, Viajante [azulejo] S/d.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Em todo o mundo o homem tem a mesma natureza. Cavaleiro de Oliveira

O mundo é a pátria natural, universal de todos os homens. O desterro não é mais do que uma passagem feita duma província para a outra. Esta outra província onde se acha um desterrado é o país de todos aqueles que nasceram nele e também o pode ser do desgraçado, se ele tiver entendimento para se acomodar com a sua sorte. A mesma pátria pode algumas vezes servir de lugar de desterro àqueles a quem não consta onde nasceram como sucedeu a Édipo, que, banido do lugar onde se criou, viveu como desterrado no mesmo lugar onde tinha nascido. Quando se levam as crianças das casas das suas amas para as de seus pais, consideram estas as ditas moradas como desterro, e por isso choram. É uma fraqueza de ânimo considerar-se o homem perdido quando se vê em um lugar onde nunca esteve. O homem deve imaginar que em todo o mundo tem a mesma natureza, que em todo está debaixo do mesmo céu, e que em toda a parte se encontram homens da mesma espécie.

Cavaleiro de Oliveira. Cartas Familiares. Selecção, prefácio e notas de Aquilino Ribeiro. 3ª edição. Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1982, p. 85. [Carta à Senhora Condessa de Roccaberti sobre o desterro]

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Guardiões. Paula Rego

Paula Rego, Os Guardiões, 2009

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Um bicho conhece a sua floresta. Clarice Lispector

Andava olhando os edifícios sob a chuva, de novo impessoal e onisciente, cego na cidade cega; mas um bicho conhece a sua floresta; e mesmo que se perca - perder-se também é caminho.

Clarice Lispector, A Cidade Sitiada. Rio de Janeiro, Editora Rocco, 1998 [1ª edição 1949], p. 182.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Não conseguiram a integração do desconhecido no conhecido. João Rocha Pinto

Regra geral, os primeiros viajantes não expressam admiração nos seus escritos. Claro que nos referimos àquela admiração princípio de todo o saber, como ensinava Aristóteles, e que, talvez por isso mesmo, não conseguiram a integração de forma inteligível e não meramente sensível, do desconhecido no conhecido, por manifesta falta de tempo e, em outras vezes, e tantas elas foram, por inadequado nível cultural, situação frequente entre as tripulações do Cabo da Boa Esperança e da matalotagem de outras singraduras.
Os que se deslocaram em viagem escreveram cartas narrativa, relações de viagem, diários ou assim chamados, elaboraram descrições de terras, traçaram esboços topográficos, reuniram elementos para os roteiros que, ao passarem de mão em mão, para serem recopiados, iam sendo simultaneamente acrescentados. Amontoaram um saber mais ou menos caótico, mas tiveram o grande mérito de trazer o nível descritivo para esta nova literatura, impondo-o, contribuição essa digna do maior relevo, sobretudo quando se conhece a sua acrescida dificuldade por comparação com a narração, como já tivemos ocasião de destacar no capitulo precedente.

João Rocha Pinto, A Viagem, Memória e Espaço. A Literatura Portuguesa de Viagens. Os Primeiros Relatos de Viagem ao Índico, 1597-1550. "Cadernos Revista de História Económica e Social", 11-12. Lisboa , Livraria Sá da Costa, 1989, p. 79-80.

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Missal iluminado. Alain Borer

O meu livro preferido é o meu passaporte, o único in octavo que abre as fronteiras, missal ornado de iluminuras da era aviónica. Algumas páginas ainda virgens, promessas tangíveis de novas viagens, potencialmente disponíveis para acolher todas as imagens do mundo.

Alain Borer, na obra colectiva Pour une Littérature Voyageuse, citado por Frank Michel, Du Voyage et des Hommes. Paris, Livre du Monde, 2013, p. 191.

sábado, 1 de fevereiro de 2014

Pilotando. Paula Rego

Paula Rego, Pilotando o barco, 2009