O Custódio era um negociante da nossa praça (Porto), que foi amigo de meu pai e que só conheci na velhice. Tipo baixo, trigueiro, de barba de passa-piolho, rico um dia, pobre no outro, e que parecia indiferente à vida e ao dinheiro. Com isto, extremamente bondoso. A nota característica da sua vida seria esta: não era a fortuna que ele procurava no negócio – era a agitação.
Não parava nunca, nem quando tinha cem contos, nem quando estava completamente arruinado – porque a sua vida foi uma linha com altos e baixos repentinos que surpreendia e maravilhava toda a gente.
E também não havia trambolhão que o arrancasse a uma placidez que parecia indiferença. Tinha o seu escritório, quando o conheci, na Praça de D. Pedro, mas a bem dizer o seu escritório era o país inteiro, porque nunca se encontrava em casa. Ninguém sabia dele, nem a família nem amigos. Saía sem vintém, com um par de meias no bolso, e estava de volta, quando estava, passado um mês. Percorria a província em negócios. Já os condutores do comboio, que não pagava, lhe não pediam o bilhete. Era o Custódio.
Viajava sempre em terceira classe, falando pouco e absorto não sei em que planos irrealizáveis e absurdos. Todos os estalajadeiros lhe sabiam o nome e fiavam dele. – É o Custódio. – Todos os almocreves, todos os grandes e pequenos negociantes da província e do Porto conheciam aquele homem honrado, que depois mandava pagar todas as suas contas.
Duma vez não houve em casa notícias dele durante três meses inteiros. Foi uma aflição. Veio-se a saber mais tarde que tinha ido ao Brasil, com o mesmo par de meias na algibeira e a mesma soberana indiferença, para realizar uns negócios que só ele conhecia, e que no Rio de Janeiro, como em Portugal, encontrara amigos, consideração, simpatia: - Olhem quem ele é, o Custódio!...
Como era um homem de bem e um homem de coração, acabou naturalmente pobre, o que lhe não deve ter pesado nada, porque, a bem dizer, o fim da sua vida não foi juntar dinheiro, mas correr mundo, planear empresas, discutir letras, assinar contratos, e sonhar; sobretudo, sonhar.
A bem dizer, cuido que o Custódio foi um grande poeta.
Raul Brandão, O Senhor Custódio, desenhos de Mário Botas, Lisboa, Quetzal ed., 1987.
CORRER A VIDA
ResponderEliminar- Sejas tu diligente, prudente, persistente, e verás como a vida te corre direita. Vai, e que a minha bênção te cubra!
- Nos dias de abundância, lembra-te dos velhos pais, Salta-Pocinhas! - gemeu o raposão, com a lágrima no olho.
Assim lhe haviam falado pai e mãe, e, porque era briosa e com boa memória, a raposeta, não obstante o jejum, as fadigas e as saudades, tinha vergonha de voltar à cova natal.
Aquilino Ribeiro, O ROMANCE DA RAPOSA, Lisboa, Livraria Bertrand, 1961, p. 18.