- ... Então é mesmo uma viagem na memória, a tua!
O Grão Kan, sempre de ouvido atento, estremecia na cama de rede sempre que pressentia no discurso de Março uma inflexão lamentosa.
- É para fazer passar uma carga de nostalgia que foste tão longe! - exclamava, ou então:
- Regressas das tuas expedições com o porão cheio de saudades! - e acrescentava, com sarcasmo:
- Pará dizer a verdade, magras aquisições para um mercador da Sereníssima!
Era este o ponto para que tendiam todas as perguntas de Kublai sobre o passado e sobre o futuro, há uma hora que brincava com isso como o gato e o rato, e, finalmente, punha Marco entre a espada e a parede, assentando-lhe um joelho no peito, agarrando-o pela barba:
- Era o que queria saber de ti: confessa o que contrabandeias: estados e ânimo, estados de graça, elegias!
Italo Calvino, As Cidades Invisíveis. Lisboa, Edições Teorema, 1990, p. 101.
Outro dia li em "Os Passos em Volta", de Herberto Helder, que "Todos os lugares são no estrangeiro." Pareceu-me verdade.
ResponderEliminarParafraseando, afirmo que todas as viagens são na memória.
IR LONGE
ResponderEliminarCerta manhã, seria domingo, dia de festa? ela saiu para a estrada e da estrada, com aquela impressão de liberdade furtiva e aguda que lhe entrava no corpo, posto o pé fora da quinta, achou o campo maravilhoso. Nunca lhe parecera e nunca mais lhe pareceu tão radioso o ar, tão linda a floração campestre, tanta novidade em tudo, como naquela ocasião. Lembrando-se de tão especial sensação ou surpresa, põe naquela data, que foi a dos seus treze anos iniciados, uma ideia de eclosão nítida da vida ou do mundo.
Irene Lisboa, VOLTAR ATRÁS PARA QUÊ?, Lisboa, Liv.ª Bertrand, s.d., pp. 20-21.