sábado, 18 de janeiro de 2014

Mas em viagem não existiam esses problemas. Alice Munro

Pela parte que me tocava, estava sempre contente por partir. Gostava de sair. Em casa, parecia que estava sempre à procura de um lugar para me esconder - às vezes das crianças, mas mais frequentemente das tarefas a fazer, do toque do telefone e da sociabilidade dos vizinhos. Queria esconder-me para me dedicar ao meu verdadeiro trabalho, o qual consistia numa espécie de apelo para partes remotas de mim mesma. Eu vivia em estado de sítio, sempre a perder o que justamente se pretendia conservar. Mas em viagem não existiam esses problemas. Podia estar a falar com Andrew, a falar com as crianças e a olhar para o que elas me apontavam - um porco num cartaz, um pónei num campo, um volkswagen numa plataforma giratória - ou a servir limonada em copos de plástico, sem que aqueles fragmentos deixassem de esvoaçar dentro de mim. Conseguia um equilíbrio básico, que me animava e dava esperança. Conseguia-o graças às minhas qualidades de observadora. De observadora, não de arquivista.

Alice Munro, O Progresso do Amor. Lisboa, Relógio d'Água, 2011, p. 92.

1 comentário:

  1. GENTE CINÉTICA!

    É preciso que compreendam que estão a falar com um homem que despachou FINNEGANS WAKE na montanha-russa de Coney Island, penetrando sem dificuldade nos abstrusos arcanos de Joyce apesar dos violentos solavancos que me fizeram perder os dentes postiços.

    Woody Allen, PARA ACABAR DE VEZ COM A CULTURA, Trad. de Jorge Leitão Ramos, Lisboa, Bertrand, 1980, p. 105.

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