António Vidigal não é um homem que se esconda por detrás da obra. Para isso contribuem duas facetas da sua personalidade. Em primeiro lugar, a sua índole extrovertida, amigável, curiosa que o impelem para o contacto com o outro e a integração fácil num colectivo. Em segundo lugar, a actividade que desenvolveu ao longo de décadas, a docência, uma actividade eminentemente relacional, que coloca o professor em equação com os seus alunos e pares, num registo em que se torna dificilmente recusável a exposição pública e a revelação idiossincrática.
Conheci-o em 1987 e trabalhei com ele diariamente durante cerca de dois anos, entre Março de 1989 e Fevereiro de 1991.
O projecto que nos aproximou foi o da criação da Escola Superior de Arte e Design das Caldas da Rainha (ESAD), em cuja fase inicial participamos de forma particularmente intensa, tanto na sua concepção e apresentação, como, em seguida, na sua estruturação e início de funcionamento lectivo.
A convite do Presidente da Câmara das Caldas da Rainha, integrámos, em princípios de 1987, um Grupo de Trabalho para o aconselhar em matérias relacionadas com a eventual radicação na cidade de unidades públicas ou privadas de ensino superior. Foi no âmbito desse grupo que se lançou o projecto de criação da ESAD das Caldas, apresentado ao Ministro da Educação, Deus Pinheiro, a 15 de Maio de 1987. O processo foi interrompido com a queda do primeiro Governo chefiado por Cavaco e Silva, e retomado pelo Ministro do seu segundo Governo, o Dr. Roberto Carneiro (tendo como Secretario de Estado do Ensino Superior Alberto Ralha), pelo que só no final do ano seguinte, 1988, a ESAD foi instituída como escola integrada no Politécnico de Leiria.
Nomeada por despacho datado de 3 de Março de 1989, a Comissão Instaladora da ESAD foi empossada pelo Ministro da Educação a 10 do mesmo mês, com a seguinte composição: Escultor António Reis Vidigal, Professor da Escola de Belas Artes de Lisboa, Dr. João Bonifácio Serra, investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, e Dr. José Luís Lalanda Ribeiro, professor da Escola Secundária de Raúl Proença de Caldas da Rainha e, até então, vogal da Comissão Instaladora da Escola Superior de Tecnologia e Gestão de Leiria. Este último, deputado eleito na nova legislatura, retomou as funções politicas que interrompera por breves semanas, pelo que na prática a Comissão Instaladora ficou reduzida aos dois primeiros membros indicados.
No final das cerimónias de posse, que decorreram no velho edifício da Câmara Municipal e a que se seguiu um almoço no Hotel Malhoa, o então Presidente do Politécnico de Leiria, Pereira de Melo, reuniu brevemente connosco no hall do mesmo hotel, para nos dar as suas instruções: deveríamos ocupar de imediato os Pavilhões do Parque, onde estivera instalado um pólo da Escola Superior de Educação, teríamos direito e recrutar uma funcionária desse mesmo pólo. Ao mesmo tempo, para surpresa nossa (esta seria apenas a primeira de uma longa série de atitudes desconcertantes do Prof. Pereira de Melo), o Presidente entregou ao Escultor uma pequena resma de papel de carta timbrado com os respectivos envelopes, um lote de selos correspondente, e duas esferográficas.
Creio que a primeira decisão do novo Conselho foi tomada ali mesmo, no improviso da situação e do local: contestar a ordem de nos instalarmos nos Pavilhões do Parque, convictos de que, se a tal acedêssemos, provavelmente jamais a nova Escola viria a contar com instalações próprias, de raiz.
Não é esta a ocasião para desfiar, em narrativa memorialística, as vicissitudes que marcaram os trabalhos da Comissão Instaladora da ESAD, ao longo dos quais partilhámos momentos empolgantes e enfrentámos dificuldades de vulto, vivemos a alegria e o entusiasmo dos grandes projectos e os momentos tristes das derrotas e das perdas. Entre estas, quero recordar o falecimento da professora e pintora Concas, envolvida pelo Escultor António Vidigal, a quem estava unida por fortes laços de amizade, no lançamento de um curso de Educação Visual.
Mas é oportunidade de testemunhar o dinamismo e a capacidade de trabalho do Presidente da Comissão Instaladora, o seu animo lutador e entusiasta, a abertura permanente a novas hipóteses e a novas soluções, a resistência e o instinto de liderança. Como é de supor, partilhamos momentos muito significativos no plano institucional e pessoal, num clima e confiança recíproca que António Vidigal soube inspirar e consolidar. Recordo uma viagem pelos Estados Unidos da América, que nos levou de Nova Iorque a Baltimore, a Rhode Island, a Providence, a Boston e a Washington onde visitamos escolas de artes e de design em busca de inspiração e experiencias que pudéssemos adoptar nas Caldas da Rainha.
António Vidigal mostrou ao longo deste seu exercício de funções públicas uma independência irrepreensível e um sentido da autonomia do projecto da ESAD que, estou convicto disso, marcou toda a sua primeira fase de existência. Sempre pautou as suas decisões pelo pragmatismo, mas não virava costas à ousadia e à inovação, e enfrentava sem constrangimento a diferença de opinião e as sugestões mais heterodoxas.
A construção de um projecto autónomo na ESAD, fazendo conviver as artes plásticas com o design, recusando tanto o modelo de um sucedâneo da Escola de Belas Artes (para o que o poderia inclinar a sua matriz profissional) como de um sucedâneo de uma escola de Tecnologia e Gestão (para onde se inclinavam as pressões vindas do Presidente do Instituto) tiveram sempre nele um protagonista empenhado, sem vacilações nem cedências.
No dia em que julgou ameaçada seriamente a sua independência e sobretudo a continuidade do trajecto de autonomia que traçara e percorrera, António Vidigal não tergiversou e demitiu-se. Mas deixava uma escola a funcionar, que erguera do nada em menos de dois anos, com um corpo docente preparado e militante, que soubera integrar nos problemas e nas soluções, ou seja, no projecto, que em muitos aspectos – funcionais e programáticos – se poderia considerar original. A história da ESAD nas duas décadas que já leva de existência, com os ajustamentos que a história concreta ditou, penso que honra o primeiro dos seus construtores, o escultor António dos Reis Vidigal.
[Publicado em António Vidigal: A Escultura como Invenção e Ofício. Exposição Antológica. Caldas da Rainha, Centro Cultural e de Congressos, 2012, p. 27-29.]
PARÁBOLA
ResponderEliminarFarto da sua terra de Espanha, um velho soldado do rei buscou consolo nas vastas geografias de Ariosto, naquele vale da lua onde está o tempo que malbaratam os sonhos e no ídolo de ouro de Mafoma que roubou Montalbán.
Em mansa troça de si mesmo ideou um homem crédulo que, perturbado pela leitura de maravilhas, deu em buscar proezas e encantamentos em lugares prosaicos que se chamavam El Toboso ou Montiel.
Vencido pela realidade, pela Espanha, Dom Quixote morreu na sua aldeia natal por volta de 1614. Pouco tempo lhe sobreviveu Miguel de Cervantes.
Para os dois, para o sonhador e para o sonhado, toda essa trama foi a oposição de dois mundos: o mundo irreal dos livros de cavalaria, o mundo quotidiano e comum do século XVII.
Não suspeitaram que os anos acabariam por limar a discórdia, não suspeitaram que a Mancha e Montiel e a magra figura do cavaleiro seriam, para o porvir, não menos poéticas que as etapas de Simbad ou que as vastas geografias de Ariosto.
Porque no princípio da literatura [como no das grandes construções humanas] está o mito, e também no fim.
Jorge Luís Borges, "Parábola de Cervantes e de Quixote", IN O FAZEDOR, Trad. de Pedro Tamen, Lisboa, Difel, 2002, p. 45.