sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Fiquei onze anos. António Barreto

Saí de Portugal a 29 de Julho de 1963. Tinha vinte anos. Viajei no Sud Express até Hendaia. Foi essa, já fora de Espanha, e longe de vários temores, a primeira cidade da liberdade. Passeei pela vila e pela praia todo o dia. Por acaso, um fotógrafo ambulante "bateu uma chapa" que guardei até hoje. Após um dia de espera, mudei de comboio. Cheguei a Genebra a 31 de Julho de manhã cedo. Véspera do 1 de Agisto, dia da "Fête Nationale", feriado em todo o país. A primeira imoressão foi de jubilo e euforia. Deixei as malas num cacifo da estacão de Cornavin. Fui a pé para a cidade, que não conhecia. A travessia do lago, pela ponte do Mont Blanc, deixou-me quase extasiado. Dez minutos depois, passei diante de um cinema que exibia o ultimo filme de Godard: Vivre sa vie. Achei que era comigo... E que era premonitório. Às duas horas comprei o meu primeiro bilhete de cinema. Só ao fim desse dia fui ter com um português, para quem tinha um recado, ou antes, uma apresentação do F!ancisco Delgado, em cuja casa dormi nessa noite. Esta tinha-lhe sido emprestada durante as férias. Decidi ficar uns dias. Fiquei onze anos.

António Barreto, in Pátria Utópica. O Grupo de Genebra Revisitado. Lisboa, Bizancio, 2011, p. 23-24

1 comentário:

  1. IN PARTIBUS INFIDELIUM

    Ao tempo de que falo, tinha quarenta e dois anos, sentia-me com trinta e dois, e vivia como se realmente os tivesse. Nunca me passara pela mente que pudesse estar entrando em declínio. Trabalhava com intensidade, tinha amigos e amor, uma filha, e, após alguns anos de conflitos e de dificuldades que resultaram numa crise de nervos ( de que não falo por ora: reservo-me para ocasião mais propícia), ingressara numa comparativa rotina, que aproveitava para, nas horas vagas, aos sábados e domingos, e durante os serões, encher resmas de papel com a minha impublicável prosa de escritor português in partibus infidelium. Era a minha maneira de continuar a viver em Portugal, sem lá estar.

    J. Rodrigues Miguéis, UM HOMEM SORRI À MORTE, Lisboa, Estúdios Cor, 1965, p. 16.

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