sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Portugal, para quem não tem casa, só é habitável em Lisboa e no Avenida Palace. António Feijó

28 de Agosto de 2009 [carta enviada em papel com o timbre do Royal Hotel, do Monte Estoril. Assina a carta o diplomata e poeta António Joaquim de Castro Feijó (1859-1917), sendo seu destinatário o 2º Visconde de Pindela, Vicente Pinheiro Lobo Machado de Melo e Almada (1852-1922), político que desempenhou cargos diplomáticos e na administração colonial]
Querido Amigo
Para te explicar convenientemente, e cabalmente, este profundo silencio em que me tenho mantido para contigo, teria de escrever longas páginas inúteis de psicologia e de lamentações mais amargas do que as de Jeremias.
Estou, como aqueles indivíduos que viveram demais (qui se sont survécu), à semelhança desses barcos sem leme, vogando à mercê do acaso e sem bem saber o que hei-de fazer. Prolonguei demais o meu congé. Devia ter partido ao chegar o Verão. Portugal, para quem não tem casa, só é habitável em Lisboa e no Avenida Palace. Tudo o mais, para quem um dia se refocilou no contacto da civilização, é detestável e até ordinário. Em chegado o Verão, como em Lisboa se respira mal, nem mesmo nos resta esse oásis do Avenida Palace. Daí todos os meus males e contrariedades. Fomos a Sintra passar quatro dias, antes de partirmos para Moreira da Maia - estivemos lá quatro semanas, todos doentes, e tanto, que ainda estamos combalidos. Sintra, com todas as suas belezas de mansão e alegria, é o lugar mais sujo e mais infecto do mundo. Pior que Marrocos. Até a água, a famosa água de Sintra, está inquinada! Apenas pudemos partir, fugimos para aqui, posta de parte a hipótese risonha de Moreira da Maia por causa de uma epidemia de bexigas que lá apareceu. Resta-nos apenas a casa do Vilar, para onde partimos dentro de dois ou três dias, passar o mês de Setembro, a ver se os pinheiros minhotos nos tonificam para a viagem da Suécia.

João Afonso Machado, Minhotos, Diplomatas e Amigos. A Correspondência (1886-1916) Entre o 2º Visconde de Pindela e António Feijó. Linda-a-Velha, DG Edições, 2007, p. 246.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Tenho de voltar a vê-la. Katherine Mansfield

- Desço aqui - disse.
Aquilo pareceu completamente impossível a Henry. O comboio começou a travar lentamente e lá fora as luzes tornaram-se mais brilhantes. A rapariga avançou para o lado do compartimento em que ele estava.
- Escute - balbuciou ele - Não a volto a ver?
Levantou-se também apoiando-se com a mão à barra da rede.
- Tenho de voltar a vê-la.
O comboio parava.
Ela murmurou:
- Venho de Londres todas as tardes.
- Posso ter a certeza? É verdade que vem todos os dias?
A sua ansiedade assustou a rapariga. Apercebendo-se disso procurou escondê-la. Rápida, uma dúvida assaltou-o: "Devo apertar-lhe a mão?" Mas com uma das mãos a rapariga segurava o puxador e com a outra o saco. O comboio imobilizou-se. Sem mais uma palavra, sem mais um olhar, ela tinha desaparecido.

Katherine Mansfield, A Viagem Indiscreta. Lisboa, Relógio d'Água, 1984, p. 57.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Abordando viajantes. Utagawa Hirosige

Utagawa Hiroshige, Goyû, femmes accostant les voyageurs
,



terça-feira, 28 de janeiro de 2014

O mito hippie. Franck Michel

O mito hippie e suas sequências, com as suas revoluções sociais, musicais e políticas, os seus heróis que são outros tantos convites à viagem (o Che, sem dúvida o melhor exemplo, mas também os festivais, como o Woodstock, ou os filmes, como Easy Rider ou More). A estrada e a liberdade estão omnipresentes, mas talvez ainda mais a libertação, tanto dos povos como das consciências. A procura existencial é aqui sobretudo de ordem colectiva, permitindo a viagem ir não apenas a Goa ou Katmandou como a Ardèche ou Summerhill. As questões da autonomia e do ambiente são despertadas e finalmente o "regresso ao território" é uma premissa do "turismo de proximidade" dos nossos dias; o desenvolvimento pessoal, tal como o sector prolífico do bem estar, mergulham as suas raízes nesta época no entanto pelas acções colectiva. O regresso: recentemente, desde o principio do terceiro milénio, este mito hippie conhece um renascimento em favor da conjuntura internacional, das ameaças ambientais, dos movimentos altermundistas. A crise convida á recessão e a ecologia politica renasce mais bela que nunca; é certo que ecolo e bio rimam com bobo, mas a moda do "regresso à terra" funciona como o palco de Larzac ao qual corresponde o negócio das residências secundárias e do turismo patrimonial e de proximidade.

Franck Michel, Voyages Pluriels. Écahnges et Mélanges. Paris, Livres du Monde, 2011, p. 35.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

O mito beatnik. Franck Michel

O mito beatnik e seus avatares, com os seus ícones literários de Nicolas Bouvier a Jack Kerouac, do fim dos anos 1940 até meados dos anos 1960. O símbolo deste mito é a estrada, tanto as das Índias das   especiarias como as que conduzem a mais liberdade, numa procura mais individual que colectiva, introduzida pela linha da viagem e das revoluções mentais e culturais em curso. O regresso: mais tarde, nos anos 1980 e 1990, este mito beatnik opera um retorno em força, introduzido pelos medias e nomeadamente pelo cinema, sempre com a estrada como alvo, e eventualmente com a forma mais ou menos comercial do turismo de aventura e a mediatização dos novos aventureiros. É o individualismo que prevalece, mas também o rito da iniciação, a procura de sentido e de reconhecimento.

Franck Michel, Voyages Pluriels. Écahnges et Mélanges. Paris, Livres du Monde, 2011, p. 34-35.

domingo, 26 de janeiro de 2014

Cidade imaginária (1)

Mobilidade e cartografia

Percorríamos a rua da estrada da aldeia quando finalmente avistámos alguém a quem fazer a pergunta de automobilista. A mulher, cuja indumentária denunciava uma origem rural, encarou-nos nos com naturalidade quando parámos o carro à sua ilharga para inquirir sobre se aquela estrada nos levaria à barragem.  - Os senhores desculpem, mas não sei dizer, respondeu em voz firme a nossa interlocutora. Pelos meus cálculos, podíamos estar a 3 ou 4 quilómetros da albufeira de Castelo do Bode, mas aquela habitante da aldeia próxima desconhecia onde levaria a estrada.

Prosseguimos a nossa rota tentativa, agora comentando o sucedido. E eu recordei uma situação similar, e igualmente surpreendente, com que me deparara em Manhatten, quando ali fui pela primeira vez em, em 1988. Algures nas imediações de Central Park, pedi auxilio a uma mulher que passeava um cão, indicador de residente, sobre a localização de uma determinada praça. A mulher olhou para o meu mapa de turista e confessou delicadamente que apesar de ali viver há sessenta anos, nunca passara para o outro lado do Parque.
O acesso alargado à mobilidade geográfica é um fenómeno relativamente recente na história de humanidade. Embora todas as civilizações tenham recebido e gerado movimentos migratórios, e as guerras propiciado deslocações massivas a longas distancias, a maior parte dos homens vivia e morria no mesmo local onde tinha nascido.
Mas já que trago hoje aqui relatos sobre este tema, não posso deixar de evocar dois episódios passadas com um dos meus amigos com uma das mais sólidas experiências cosmopolitas. Um dia viemos juntos ao Porto participar numa cerimonia oficial. Com espanto, descobri que este frequentador das livrarias de Paris, Londres ou Nova Iorque não era capaz de reconhecer a avenida dos Aliados ou a rotunda da Boavista.
Durante muitos anos, este meu amigo acompanhou politicamente o destino de Timor. Finalmente lograda a autonomia em liberdade do novo Estado, foi convidado para a cerimonia da independência. Da janela do avião militar que nos transportou de Darwin para Dili, ele ia identificando um a um os acidentes de relevo e da linha de costa de Timor Leste. - Mas tu nunca cá estiveste! - exclamei eu, admirado. - Pois não - respondeu. - É para isso que serve a cartografia!

[Publicado no semanário Região de Leiria, edição de 9 de Janeiro de 2014]

sábado, 25 de janeiro de 2014

Cultivar a ética da hospitalidade. Jacques Derrida

O termo "cidade-refúgio" escolhemo-lo, sem duvida, porque ele tem títulos históricos a nosso respeito e a respeito de todo aquele que cultiva a ética da hospitalidade. Cultivar a ética  da hospitalidade - não será esta linguagem, além do mais, tautológica? Apesar de todas as tensões ou contradições que a possam marcar, apesar de todas as perversões que a espreitem, nem sequer temos de cultivar uma ética da hospitalidade. A hospitalidade é a própria cultura e não é uma ética entre outras. Na medida em que ela diz respeito ao estudos, a saber, à morada, à casa própria, ao lugar de residência familiar, assim como ao modo de nela estar, ao modo de se relacionar consigo e com os outros, com os outros como com os seus ou como com estrangeiros, a ética é a hospitalidade, ela é de parte a parte co-extensiva com a experiência da hospitalidade, seja qual for o modo ela seja aberta ou limitada.

Jacques Derrida, Cosmopolitas de Todos os Países, Mais um Esforço! Coimbra, Minerva, 2001, p. 43-44

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

São Cristóvão. Paula Rego

Paula Rego, St Christopher, 2009-2010

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Uma vez, numa noite escura e tempestuosa. M.-L von Franz

São Cristóvão, padroeiro dos viajantes, é um bom exemplo deste tipo de experiência. Segundo a lenda, ele orgulhava-se arrogantemente da sua tremenda força física e gostava de servir apenas aos mais fortes. Serviu primeiro a um rei; mas quando verificou que o rei tinha medo do diabo, deixou-o e passou a servir o diabo. Descobriu um dia que o diabo tinha medo do crucifixo e decidiu então servir Cristo, se o encontrasse. Um padre aconselhou-o a que esperasse Cristo no vau de um rio. Passaram-se vários anos, durante os quais ele carregou e ajudou muita gente a atravessar o rio. Mas uma vez, numa noite escura e tempestuosa, uma criança chamou-o para lhe pedir que o transportasse. São Cristóvão colocou-a aos ombros com toda a facilidade, mas a cada passo avançava mais lentamente, pois o seu fardo tornava-se cada vez mais pesado. Quando chegou ao meio do rio, pareceu-lhe que carregava "o universo inteiro". Percebeu nessa altura que era Cristo que trazia aos ombros, e Cristo absolveu-o dos seus pecados e deu-lhe a eternidade.
Esta criança milagrosa é o símbolo do Eu que literalmente deprime o ser humano comum, apesar de ser a única hipótese de o redimir. Em muitos trabalhos artísticos, Cristo é retratado com a esfera do mundo, o que significa claramente o Eu, já que a criança e a esfera são símbolos universais da totalidade.

M.-L. von Franz, "O processo de individualização" in AAVV, Os Homens e os seus Símbolos. Rio de Janeiro, Editorial Nova Fronteira, 1993, p. 218-219.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Pretende fazer uma grande viagem com amigos. M.-L. Franz

O que todos nós sabemos teoricamente  - que tudo depende do indivíduo - torna-se através dos sonhos, um facto palpável que cada um pode conhecer pessoalmente. Temos, algumas vezes, uma poderosa sensação de que o Grande Homem quer alguma coisa de nós, estabelecendo algums tarefas especiais para cumprirmos. A nossa reacção positiva a esta experiência pode ajudar-nos a adquirir forças para nadar contar a corrente do preconceito colectivo, levando a sério nossa própria alma.
Naturalmente, nem sempre há-de ser uma tarefa agradável. Por exemplo, se você pretende fazer uma grande viagem com  amigos no próximo domingo, um sonho pode proibir este passeio, pedindo que, em seu lugar, faça alguma trabalho criativo. Se atender ao seu inconsciente e lhe obedecer, pode esperar dai em diante interferências constantes nos seus planos conscientes. Nossa vontade é sempre interrompida por outras intenções a que nos devemos submeter, ou pelo menos considerar seriamente.  É promissor, em parte, que a ideia de dever, de obrigação ligada ao processo de individualização nos parece, muitas vezes, mais um peso do que uma benção imediata.

M.-L. von Franz, "O processo de individualização" in AAVV, Os Homens e os seus Símbolos. Rio de Janeiro, Editorial Nova Fronteira, 1993, p. 218.

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Recordo uma viagem pelos Estados Unidos da América

António Vidigal, escultor de uma escola

António Vidigal não é um homem que se esconda por detrás da obra. Para isso contribuem duas facetas da sua personalidade. Em primeiro lugar, a sua índole extrovertida, amigável, curiosa que o impelem para o contacto com o outro e a integração fácil num colectivo. Em segundo lugar, a actividade que desenvolveu ao longo de décadas, a docência, uma actividade eminentemente relacional, que coloca o professor em equação com os seus alunos e pares, num registo em que se torna dificilmente recusável a exposição pública e a revelação idiossincrática.
Conheci-o em 1987 e trabalhei com ele diariamente durante cerca de dois anos, entre Março de 1989 e Fevereiro de 1991.
O projecto que nos aproximou foi o da criação da Escola Superior de Arte e Design das Caldas da Rainha (ESAD), em cuja fase inicial participamos de forma particularmente intensa, tanto na sua concepção e apresentação, como, em seguida, na sua estruturação e início de funcionamento lectivo.
A convite do Presidente da Câmara das Caldas da Rainha, integrámos, em princípios de 1987, um Grupo de Trabalho para o aconselhar em matérias relacionadas com a eventual radicação na cidade de unidades públicas ou privadas de ensino superior. Foi no âmbito desse grupo que se lançou o projecto de criação da ESAD das Caldas, apresentado ao Ministro da Educação, Deus Pinheiro, a 15 de Maio de 1987. O processo foi interrompido com a queda do primeiro Governo chefiado por Cavaco e Silva, e retomado pelo Ministro do seu segundo Governo, o Dr. Roberto Carneiro (tendo como Secretario de Estado do Ensino Superior Alberto Ralha), pelo que só no final do ano seguinte, 1988, a ESAD foi instituída como escola integrada no Politécnico de Leiria.
Nomeada por despacho datado de 3 de Março de 1989, a Comissão Instaladora da ESAD foi empossada pelo Ministro da Educação a 10 do mesmo mês, com a seguinte composição: Escultor António Reis Vidigal, Professor da Escola de Belas Artes de Lisboa, Dr. João Bonifácio Serra, investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, e Dr. José Luís Lalanda Ribeiro, professor da Escola Secundária de Raúl Proença de Caldas da Rainha e, até então, vogal da Comissão Instaladora da Escola Superior de Tecnologia e Gestão de Leiria. Este último, deputado eleito na nova legislatura, retomou as funções politicas que interrompera por breves semanas, pelo que na prática a Comissão Instaladora ficou reduzida aos dois primeiros membros indicados.
No final das cerimónias de posse, que decorreram no velho edifício da Câmara Municipal e a que se seguiu um almoço no Hotel Malhoa, o então Presidente do Politécnico de Leiria, Pereira de Melo, reuniu brevemente connosco no hall do mesmo hotel, para nos dar as suas instruções: deveríamos ocupar de imediato os Pavilhões do Parque, onde estivera instalado um pólo da Escola Superior de Educação, teríamos direito e recrutar uma funcionária desse mesmo pólo. Ao mesmo tempo, para surpresa nossa (esta seria apenas a primeira de uma longa série de atitudes desconcertantes do Prof. Pereira de Melo), o Presidente entregou ao Escultor uma pequena resma de papel de carta timbrado com os respectivos envelopes, um lote de selos correspondente, e duas esferográficas.
Creio que a primeira decisão do novo Conselho foi tomada ali mesmo, no improviso da situação e do local: contestar a ordem de nos instalarmos nos Pavilhões do Parque, convictos de que, se a tal acedêssemos, provavelmente jamais a nova Escola viria a contar com instalações próprias, de raiz.
Não é esta a ocasião para desfiar, em narrativa memorialística, as vicissitudes que marcaram os trabalhos da Comissão Instaladora da ESAD, ao longo dos quais partilhámos momentos empolgantes e enfrentámos dificuldades de vulto, vivemos a alegria e o entusiasmo dos grandes projectos e os momentos tristes das derrotas e das perdas. Entre estas, quero recordar o falecimento da professora e pintora Concas, envolvida pelo Escultor António Vidigal, a quem estava unida por fortes laços de amizade, no lançamento de um curso de Educação Visual.
Mas é oportunidade de testemunhar o dinamismo e a capacidade de trabalho do Presidente da Comissão Instaladora, o seu animo lutador e entusiasta, a abertura permanente a novas hipóteses e a novas soluções, a resistência e o instinto de liderança. Como é de supor, partilhamos momentos muito significativos no plano institucional e pessoal, num clima e confiança recíproca que António Vidigal soube inspirar e consolidar. Recordo uma viagem pelos Estados Unidos da América, que nos levou de Nova Iorque a Baltimore, a Rhode Island, a Providence, a Boston e a Washington onde visitamos escolas de artes e de design em busca de inspiração e experiencias que pudéssemos adoptar nas Caldas da Rainha.
António Vidigal mostrou ao longo deste seu exercício de funções públicas uma independência irrepreensível e um sentido da autonomia do projecto da ESAD que, estou convicto disso, marcou toda a sua primeira fase de existência. Sempre pautou as suas decisões pelo pragmatismo, mas não virava costas à ousadia e à inovação, e enfrentava sem constrangimento a diferença de opinião e as sugestões mais heterodoxas.
A construção de um projecto autónomo na ESAD, fazendo conviver as artes plásticas com o design, recusando tanto o modelo de um sucedâneo da Escola de Belas Artes (para o que o poderia inclinar a sua matriz profissional) como de um sucedâneo de uma escola de Tecnologia e Gestão (para onde se inclinavam as pressões vindas do Presidente do Instituto) tiveram sempre nele um protagonista empenhado, sem vacilações nem cedências.
No dia em que julgou ameaçada seriamente a sua independência e sobretudo a continuidade do trajecto de autonomia que traçara e percorrera, António Vidigal não tergiversou e demitiu-se. Mas deixava uma escola a funcionar, que erguera do nada em menos de dois anos, com um corpo docente preparado e militante, que soubera integrar nos problemas e nas soluções, ou seja, no projecto, que em muitos aspectos – funcionais e programáticos – se poderia considerar original. A história da ESAD nas duas décadas que já leva de existência, com os ajustamentos que a história concreta ditou, penso que honra o primeiro dos seus construtores, o escultor António dos Reis Vidigal.

[Publicado em António Vidigal: A Escultura como Invenção e Ofício. Exposição Antológica. Caldas da Rainha, Centro Cultural e de Congressos, 2012, p. 27-29.]

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

A caminho do inesperado. Cristina Nobre

Inesperado

Ano traz ano
a estação dos reencontros
o sorriso dos naturais

Voltar ao nosso estado
partilhar
com rostos conhecidos
a familiaridade dos gestos

A certeza da comunhão
o desenrolar
espaçado
dos nossos passos

A caminho
do inesperado
de todos os dias

Ano traz ano

Cristina Nobre, Ano Traz Ano. S/l, Casa-Nau, 2013, p. 90.

domingo, 19 de janeiro de 2014

O verdadeiro elemento do marinheiro é o mar. Joseph Conrad

Informei-o de que o nosso amigo Marlow deixara, havia já alguns anos, a vida do mar, mas tivera pouca vontade em o fazer.
Mr. Powell comentou:
- Talvez imaginasse que já estava farto.
- Imaginasse, é assim mesmo, é essa a palavra que deve empregar - observei, lembrando-me do carácter provisório da larga estadia de Marlow entre nós. - De ano para ano foi vivendo em terra; mas como um pássaro pousado nos ramos de uma árvore, sempre com um pé no ar, pronto a voar bruscamente para o seu verdadeiro elemento, o que nos não deixa compreender os motivos que o levam a ficar parado tantos minutos seguidos. O verdadeiro elemento do marinheiro é o mar, e Marlow, quando se demorava em terra, tornava-se para mim objecto de comiseração, por assim dizer, incrédula, como qualquer ave que, em segredo, tivesse perdido a fé na excelsa virtude de voar.

Joseph Conrad, Acaso. Porto, Civilização Editora, 2013, p. 31.

sábado, 18 de janeiro de 2014

Mas em viagem não existiam esses problemas. Alice Munro

Pela parte que me tocava, estava sempre contente por partir. Gostava de sair. Em casa, parecia que estava sempre à procura de um lugar para me esconder - às vezes das crianças, mas mais frequentemente das tarefas a fazer, do toque do telefone e da sociabilidade dos vizinhos. Queria esconder-me para me dedicar ao meu verdadeiro trabalho, o qual consistia numa espécie de apelo para partes remotas de mim mesma. Eu vivia em estado de sítio, sempre a perder o que justamente se pretendia conservar. Mas em viagem não existiam esses problemas. Podia estar a falar com Andrew, a falar com as crianças e a olhar para o que elas me apontavam - um porco num cartaz, um pónei num campo, um volkswagen numa plataforma giratória - ou a servir limonada em copos de plástico, sem que aqueles fragmentos deixassem de esvoaçar dentro de mim. Conseguia um equilíbrio básico, que me animava e dava esperança. Conseguia-o graças às minhas qualidades de observadora. De observadora, não de arquivista.

Alice Munro, O Progresso do Amor. Lisboa, Relógio d'Água, 2011, p. 92.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Veio-se a saber mais tarde que tinha ido ao Brasil. Raul Brandão

O Senhor Custódio

​O Custódio era um negociante da nossa praça (Porto), que foi amigo de meu pai e que só conheci na velhice. Tipo baixo, trigueiro, de barba de passa-piolho, rico um dia, pobre no outro, e que parecia indiferente à vida e ao dinheiro. Com isto, extremamente bondoso. A nota característica da sua vida seria esta: não era a fortuna que ele procurava no negócio – era a agitação.
​Não parava nunca, nem quando tinha cem contos, nem quando estava completamente arruinado – porque a sua vida foi uma linha com altos e baixos repentinos que surpreendia e maravilhava toda a gente.
​E também não havia trambolhão que o arrancasse a uma placidez que parecia indiferença. Tinha o seu escritório, quando o conheci, na Praça de D. Pedro, mas a bem dizer o seu escritório era o país inteiro, porque nunca se encontrava em casa. Ninguém sabia dele, nem a família nem amigos. Saía sem vintém, com um par de meias no bolso, e estava de volta, quando estava, passado um mês. Percorria a província em negócios. Já os condutores do comboio, que não pagava, lhe não pediam o bilhete. Era o Custódio.
​Viajava sempre em terceira classe, falando pouco e absorto não sei em que planos irrealizáveis e absurdos. Todos os estalajadeiros lhe sabiam o nome e fiavam dele. – É o Custódio. – Todos os almocreves, todos os grandes e pequenos negociantes da província e do Porto conheciam aquele homem honrado, que depois mandava pagar todas as suas contas.
​Duma vez não houve em casa notícias dele durante três meses inteiros. Foi uma aflição. Veio-se a saber mais tarde que tinha ido ao Brasil, com o mesmo par de meias na algibeira e a mesma soberana indiferença, para realizar uns negócios que só ele conhecia, e que no Rio de Janeiro, como em Portugal, encontrara amigos, consideração, simpatia: - Olhem quem ele é, o Custódio!...
​Como era um homem de bem e um homem de coração, acabou naturalmente pobre, o que lhe não deve ter pesado nada, porque, a bem dizer, o fim da sua vida não foi juntar dinheiro, mas correr mundo, planear empresas, discutir letras, assinar contratos, e sonhar; sobretudo, sonhar.
​A bem dizer, cuido que o Custódio foi um grande poeta.

Raul Brandão, O Senhor Custódio, desenhos de Mário Botas, Lisboa, Quetzal ed., 1987.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Diziam-lhe que além era o mar. Abel Salazar

E logo saltava de manhã, fresca como uma maçã, sob a carícia da luz, lavando-se num alguidar, pronta para a tarefa diária, ao sol a à chuva, em companhia do gado. Jamais saíra dali e os seus olhos, habituados às galas desta natureza meiga e suave, não se surpreendiam coma sua beleza. Mas do seu mirante diário, Manuela contemplava os perfis distantes das serras, onde desaparecia o sol numa apoteose de oiro. Diziam-lhe que além era o mar, e Manuela absorvia-se na contemplação distante, não imaginando o que seria essencial de que lhe falavam, tão vasto, sem fim, lendário quase. A sua pequena imaginação voava então para longe, galgava o perfil das serras e perdia-se à distancia, nessas cidades que jamais vira, e de que ouvia falar, tão ruidosas, com ruas gigantes e aparelhos infernais...

Abel Salazar, Recordações do Minho Arcaico. Obras Completas de Abel Salazar, vol. IV. Porto, Campo das Letras/Casa-Museu Abel Salazar, 2002, p. 37.

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

No mundo é que eles se armam gente. Teixeira de Queirós

Porém, reconhecendo que aquela inteligência naturalmente viva se acanharia na estreiteza de uma aldeia, o bom cura é que promoveu, entre a melhor gente da freguesia, uma colheita de donativos para vestirem o Luis Miguel pagarem-lhe a passagem para o Brasil, terra prodigiosa, onde o oiro rebenta das arvores com a bondade dos frutos que alimentam o homem. [...]
- Mas, senhor, - entendia a mãe - olhe que ele para conservar dinheiro não lhe serve. Quando ganhar, quanto dá!
- Cala-te mulher - contestou Miguel - deixa ir o rapaz que no mundo é que eles se armam gente. Tenho-lhe amor, pois é meu filho, mas o senhor cura é que diz bem.

Teixeira de Queirós, Comédia do Campo (Cenas do Minho). A Nossa Gente. Lisboa, Parceria António Maria Pereira, 1899, p. 130-131.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Sabina jamais conhecera uma pausa. Anaïs Nin

Debruçando-se à janela, de madrugada, comprimindo os seios contra o parapeito da janela, ela ainda olhava para fora, à espera de ver o que não conseguira possuir. Olhava para a noite que findava com a aguda vigilância do viajante que não consegue nunca chegar ao seu destino, como as pessoas vulgares chegam em paz aos seus destinos no fim de cada dia, aceitando as pausas, os desertos, os filamentos, como ela não podia aceitá-los.
Sabrina sentia-se perdida.
A bússola selvagem a cujas flutuações ela sempre obedecera, procurando o tumulto e a agitação em vez da orientação, quebrou-se subitamente, fazendo com que ela já não conhecesse sequer o alívio das marés, das correntes e dispersões.
Sentia-se perdida. A dispersão tornara-se demasiado vasta, demasiado extensa. Uma flecha de dor trespassou o modelo nebuloso, Sabina deslocara-se sempre tão depressa que toda a dor passava rapidamente como através de um crivo, deixando um sofrimento semelhante ao sofrimento das crianças, em breve esquecido, em breve substituído por outro interesse. Ela jamais conhecera uma pausa.
A sua capa, que era mais do que uma capa, que era uma vela, que eram os sentimentos que ela atirava ais quatro ventos para serem enfunados e arrastados pelo vento, jazia serena.
O seu vestido estava sereno.
Era como se agora ela não fosse nada que o vento pudesse apanhar, enfunar e impelir.
Para Sabina, a serenidade era a morte.

Anaïs Nin, Uma Espia na Casa do Amor. Lisboa, Vega, 1979, p. 106-107.

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Os horizontes estavam fechados. Valentim Alexandre

Quando nos perguntam por que partimos, um tema emerge em todas as respostas: em Portugal abafava-se. Os horizontes estavam fechados, num país estreitamente controlado por um regime político que se dera por objectivo levar os portugueses a viver "habitualmente" - ou seja, sem inquietações nem sobressaltos, segundo os valores tradicionais.

Valentim Alexandre, in Pátria Utópica. O Grupo de Genebra Revisitado. Lisboa, Bizancio, 2011, p. 81

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Então o que me fez sair de Portugal? Medeiros Ferreira

Vou começar pela decisão de regressar tomada logo depois do 25 de Abril, que formulei da seguinte forma: "o que me fez sair de Portugal obriga-me a voltar".
Então o que me fez sair de Portugal?
Em primeiro lugar, uma situação pessoal cada vez mais insustentável: dirigente estudantil entre 1961 e 1865, fora preso pela PIDE mal tinha sido eleito secretário-geral da RIA em Outubro de 1962, sucedendo a Jorge Sampaio, e dias depois de o Eurico me ter convidado para membro do PCP em Outubro daquele ano.

José Medeiros Ferreira, in Pátria Utópica. O Grupo de Genebra Revisitado. Lisboa, Bizancio, 2011, p. 73

domingo, 5 de janeiro de 2014

Marcado nos astros. Eurico de Figueiredo

O ter de partir de Portugal, no contexto do salazarismo, estava, pelo menos para mim, marcado mos astros.
Estava marcado nos "mitos" da família, nas suas estórias antes de ter nascido, na minha memória pessoal, experiência de vida, intervenção política.

Eurico de Figueiredo, in Pátria Utópica. O Grupo de Genebra Revisitado. Lisboa, Bizancio, 2011, p. 59.

sábado, 4 de janeiro de 2014

Eu saí de Portugal, em 1965, porque me tinha casado. Ana Benavente

Eu saí de Portugal, em 1965 [...] porque me tinha casado, em 1964, ainda com 18 anos, com o Ruben Ayash. Ele eram activista associativo na Faculdade de Direito e eu de Letras, em Lisboa, e não queríamos que ele fosse mobilizado para a guerra colonial.

Ana Benavente, in Pátria Utópica. O Grupo de Genebra Revisitado. Lisboa, Bizancio, 2011, p. 41.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Fiquei onze anos. António Barreto

Saí de Portugal a 29 de Julho de 1963. Tinha vinte anos. Viajei no Sud Express até Hendaia. Foi essa, já fora de Espanha, e longe de vários temores, a primeira cidade da liberdade. Passeei pela vila e pela praia todo o dia. Por acaso, um fotógrafo ambulante "bateu uma chapa" que guardei até hoje. Após um dia de espera, mudei de comboio. Cheguei a Genebra a 31 de Julho de manhã cedo. Véspera do 1 de Agisto, dia da "Fête Nationale", feriado em todo o país. A primeira imoressão foi de jubilo e euforia. Deixei as malas num cacifo da estacão de Cornavin. Fui a pé para a cidade, que não conhecia. A travessia do lago, pela ponte do Mont Blanc, deixou-me quase extasiado. Dez minutos depois, passei diante de um cinema que exibia o ultimo filme de Godard: Vivre sa vie. Achei que era comigo... E que era premonitório. Às duas horas comprei o meu primeiro bilhete de cinema. Só ao fim desse dia fui ter com um português, para quem tinha um recado, ou antes, uma apresentação do F!ancisco Delgado, em cuja casa dormi nessa noite. Esta tinha-lhe sido emprestada durante as férias. Decidi ficar uns dias. Fiquei onze anos.

António Barreto, in Pátria Utópica. O Grupo de Genebra Revisitado. Lisboa, Bizancio, 2011, p. 23-24

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Com o porão cheio de saudades. Italo Calvino

- ... Então é mesmo uma viagem na memória, a tua! 
O Grão Kan, sempre de ouvido atento, estremecia na cama de rede sempre que pressentia no discurso de Março uma inflexão lamentosa.
- É para fazer passar uma carga de nostalgia  que foste tão longe! - exclamava, ou então:
- Regressas das tuas expedições com o porão cheio de saudades! - e acrescentava, com sarcasmo:
- Pará dizer a verdade, magras aquisições para um mercador da Sereníssima!
Era este o ponto para que tendiam todas as perguntas de Kublai sobre o passado e sobre o futuro, há uma hora que brincava com isso como o gato e o rato, e, finalmente, punha Marco entre a espada e a parede, assentando-lhe um joelho no peito, agarrando-o pela barba:
- Era o que queria saber de ti: confessa o que contrabandeias: estados e ânimo, estados de graça, elegias!

Italo Calvino, As Cidades Invisíveis. Lisboa, Edições Teorema, 1990, p. 101.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

É uma extravagância. Citado por Georges Cukor

Para os aventureiros, os que escolhem trilhos conhecidos, a vida é uma  extravagancia na qual o riso, a sorte e o amor acontecem de formas estranhas, inesperadamente, mas nem por isso deixam de ser menos doces.

Epígrafe do filme de Georges Cukor, Sylvia Scarlett, 1935.