Muitos anos mais tarde ainda, já ela tinha morrido, eu
estava numa sessão de autógrafos de um livro meu, no Rio de Janeiro. Da fila,
emergiram uma senhora nova e bonita e uma senhora muito velha, outrora bonita -
neta e avó. Esta última apresentou-se-me e o nome era-me familiar, sem
conseguir situar aonde. Ela esclareceu-me: "Eu e meu falecido marido
éramos grandes amigos de sua mãe. Viajámos de carro até Brasília, em 1966,
tinha a cidade sido acabada de fundar; viajámos por Espanha, com o João Cabral
de Melo Neto, quando ele era cônsul do Brasil em Sevilha; e viajámos com ela e
o seu pai até à Grécia." Aí, eu lembrei-me enfim de quem ela era: lá, do
infinito, veio-me a memória da descrição dessas viagens feitas pela minha mãe,
e fiquei sem saber bem o que dizer. Mas a senhora sacou de um pequeno maço de
quatro ou cinco fotografias e disse-me: "Guardei isto durante muitos anos,
mas agora acho que é altura de as dar ao filho da Sofia." Eram fotografias
deles todos em Espanha, no Brasil e na Grécia. E havia uma que era quase
insuportável de ver: a minha mãe e o meu pai na Grécia, ela sentada no que
parecem ser umas ruínas dum templo, ele abraçando-a por trás e ela olhando em
frente o mar, com os olhos quase fechados e uma expressão de felicidade tão
grande que até dói de pensar que o tempo não parou naquele instante,
eternamente.
Fomos até Madrid, parando em Trujillo, a terra de Pizarro, e
em Toledo, para ela me mostrar o Enterro do Conde de Orgaz, do Greco.
Mostrou-me o Prado, o Velázquez, o Goya, o Botticelli, o Rembrandt. Tudo feito
no seu ritmo de viagem: olhar, parar, continuar a olhar e ficar. Vinte e cinco
anos passados, cruzámo-nos na Índia. Não viajámos propriamente juntos:
partilhámos o mesmo avião. Ela ia como convidada do Presidente Mário Soares, em
visita de Estado, e eu aproveitava a boleia no avião para frazer uma reportagem
em Goa. Mas quando, em Delhi, lhe disse que seguia para Goa, ela, tentada pela
poeira da História, resolveu vir também, trocando o protocolo de Estado pelas
memórias do Império.
A ESTÁTUA
ResponderEliminarNas suas mãos a voz do mar dormia
Nos seus cabelos o vento se esculpia
A luz rolava entre os seus braços frios
E nos seus olhos cegos e vazios
Boiava o rasto branco dos navios.
Sophia de Mello Breyner, OBRA POÉTICA II, Lisboa, Caminho, 1995, p. 35
Pois é. Há fotografias muito importantes, claro. As que testemunham instantes que doem por não se poder parar o tempo neles, por exemplo.
ResponderEliminarÉ condição desses instantes só mais tarde surgir a consciência da importância que tiveram. O sublime, exatamente por o ser, acontece raramente, ou raramente pode ser capatado.
Aqui a fotografia permite transmitir a magia vivida pelos pais ao filho apanhado desprevenido. Valeu a pena alguém tê-la tirado, surpreendendo o casal que, pela descrição, não parece ter feito pose para a fotografia.