sábado, 12 de outubro de 2013

Viajar com Sophia (2). Miguel Sousa Tavares


Muitos anos mais tarde ainda, já ela tinha morrido, eu estava numa sessão de autógrafos de um livro meu, no Rio de Janeiro. Da fila, emergiram uma senhora nova e bonita e uma senhora muito velha, outrora bonita - neta e avó. Esta última apresentou-se-me e o nome era-me familiar, sem conseguir situar aonde. Ela esclareceu-me: "Eu e meu falecido marido éramos grandes amigos de sua mãe. Viajámos de carro até Brasília, em 1966, tinha a cidade sido acabada de fundar; viajámos por Espanha, com o João Cabral de Melo Neto, quando ele era cônsul do Brasil em Sevilha; e viajámos com ela e o seu pai até à Grécia." Aí, eu lembrei-me enfim de quem ela era: lá, do infinito, veio-me a memória da descrição dessas viagens feitas pela minha mãe, e fiquei sem saber bem o que dizer. Mas a senhora sacou de um pequeno maço de quatro ou cinco fotografias e disse-me: "Guardei isto durante muitos anos, mas agora acho que é altura de as dar ao filho da Sofia." Eram fotografias deles todos em Espanha, no Brasil e na Grécia. E havia uma que era quase insuportável de ver: a minha mãe e o meu pai na Grécia, ela sentada no que parecem ser umas ruínas dum templo, ele abraçando-a por trás e ela olhando em frente o mar, com os olhos quase fechados e uma expressão de felicidade tão grande que até dói de pensar que o tempo não parou naquele instante, eternamente.
 Fomos até Madrid, parando em Trujillo, a terra de Pizarro, e em Toledo, para ela me mostrar o Enterro do Conde de Orgaz, do Greco. Mostrou-me o Prado, o Velázquez, o Goya, o Botticelli, o Rembrandt. Tudo feito no seu ritmo de viagem: olhar, parar, continuar a olhar e ficar. Vinte e cinco anos passados, cruzámo-nos na Índia. Não viajámos propriamente juntos: partilhámos o mesmo avião. Ela ia como convidada do Presidente Mário Soares, em visita de Estado, e eu aproveitava a boleia no avião para frazer uma reportagem em Goa. Mas quando, em Delhi, lhe disse que seguia para Goa, ela, tentada pela poeira da História, resolveu vir também, trocando o protocolo de Estado pelas memórias do Império.

2 comentários:

  1. A ESTÁTUA

    Nas suas mãos a voz do mar dormia
    Nos seus cabelos o vento se esculpia

    A luz rolava entre os seus braços frios
    E nos seus olhos cegos e vazios
    Boiava o rasto branco dos navios.

    Sophia de Mello Breyner, OBRA POÉTICA II, Lisboa, Caminho, 1995, p. 35

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  2. Pois é. Há fotografias muito importantes, claro. As que testemunham instantes que doem por não se poder parar o tempo neles, por exemplo.

    É condição desses instantes só mais tarde surgir a consciência da importância que tiveram. O sublime, exatamente por o ser, acontece raramente, ou raramente pode ser capatado.

    Aqui a fotografia permite transmitir a magia vivida pelos pais ao filho apanhado desprevenido. Valeu a pena alguém tê-la tirado, surpreendendo o casal que, pela descrição, não parece ter feito pose para a fotografia.

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