- Tenho fome e sede - queixou-se o alcaide.
- E o "rocinante" está muito cansado - respondeu o padre Quixote.
- Se ao menos pudéssemos encontrar uma estalagem; mas o vinho, ao longo desta estrada principal, não é de confiança.
- Temos muito bom vinho manchego.
- Mas a comida... Tenho de comer.
- Teresa insistiu em colocar um embrulho no banco traseiro. Disse que era para uma emergência. Não confiava no "rocinante" mais do que o garagista.
- Mas isto é uma emergência - disse o alcaide.
O padre Quixote abriu o embrulho.
- Deus seja louvado! - disse ele. - Um grande queijo manchego, alguns chouriços fumados e até dois copos e duas facas.
- Não sei dar graças a Deus, mas sei certamente dá-las à Teresa.
- Oh, bem, provavelmente é a mesma coisa, Sancho. Todas as nossas boas acções são actos de Deus, assim como as más acções são actos do Diabo.
- Nesse caso, deve perdoar ao nosso pobre Estaline - disse o alcaide -, porque talvez só o Diabo seja responsável.
Continuaram muito devagar, à procura de uma árvore que lhe desse sombra, porque o sol-poente inclinava-se baixo, sobre os campos, fazendo sombras muito estreitas, para os dois homens se poderem sentar à vontade. Finalmente, sob o muro arruinado de uma casa que pertencia a uma quinta abandonada, encontraram o que precisavam. Alguém pintara uma foice e um martelo a vermelho por cima da pedra em desagregação.
- Preferia comer sob uma cruz - disse o padre Quixote.
- Que importância tem? O sabor do queijo não será afectado pelo cruz ou pelo martelo. Além disso, haverá diferença entre os dois? Ambos são protestos contra a injustiça.
- Mas os resultados foram levemente diferentes. Um criou a tirania, outro a caridade.
- Tirania? Caridade? E a Inquisição e o grande patriota Torquemada?
- Foram menos os que sofreram com Torquemada do que com Estaline.
- Tem a certeza disso em relação à população da Rússia no tempo de Estaline e à da Espanha no tempo de Torquemada?
- Não sou um estatístico, Sancho. Abra uma garrafa, se tiver um saca-rolhas.
Graham Greene, Monsenhor Quixote. Mem Martins, Europa-América, s/d, p. 41-42
ATÉ QUE PONTO, O MAIS EXTREMADO, PODE O
ResponderEliminarIMAGINAR
"A carripana pôs-se em marcha para um lado, D. Quixote, Sancho e o fidalgo do Verde Gabão para outro. Durante todo este tempo, D. Diogo não soltara palavra, muito atento às vozes e aos gestos de D. Quixote, parecendo-lhe um homem sensato, raiado de louco, e um homem louco com intervalos de sensatez. Não chegara ainda ao seu conhecimento a primeira parte da História. Se a tivesse lido, cessaria o assombro que lhe causavam as acções e os dizeres do cavaleiro, pois ficava logo sabendo qual o género da sua loucura. Como o não sabia, ora o tinha por ajuizado, ora por doido, porque tudo o que lhe ouvira era razoável, expresso com certa distinção, mesmo bem dito, e o que obrava era disparatado, temerário e tonto. Dizia para o seu gabão: que maior desconchavo que encafuar na cabeça o elmo cheio de requeijões e imaginar que eram os miolos que se lhe estavam a derreter por obra dos encantadores?"
Miguel de Cervantes Saavedra, O ENGENHOSO FIDALGO D. QUIXOTE DE LA MANCHA, Traduzido por Aquilino Ribeiro e ilustrado por Lima de Freitas, vol. II, Lisboa, Fólio, 1954, p. 83.