Hotel Continental
Biarritz, 20 de Fevereiro, 1900
Minha querida Emília
Continua o tempestuosíssimo tempo. Hoje de manhã, antes do almoço, ainda houve um repouso, e eu pude dar um longo passeio pela beira deste formoso mar. Mas logo depois do meio-dia recomeçou a desesperada borrasca. Felizmente a temperatura está doce, quase de Primavera. No meu quarto, sem lume, há sempre 18 a 19 graus. Eu, graças a Deus, ontem e hoje tenho estado melhor, sem acréscimos. Mas realmente pouco benefício posso tirar destes dias passados num fumoir a ler dormentemente medíocres romances ingleses, e a ir de vez em quando à janela, para verificar através dos vidros embaciados que a tormenta é cada vez mais áspera.
Encontrei aqui no Hotel, o Nabuco, que veio para o Sul, para a convalescença da pequena. É excelente companhia - e com ele converso e passo estas tardes encerradas. Eu estou aqui pensando em ir uns dias para Cannes, ou outro sítio da Riviera. Mas a jornada é longa, fastidiosa, além de cara. Depois talvez esta tormenta que anda agora tão teimosamente no Oceano, se prepare também a ir para o Mediterrâneo.
Hoje não tive carta. Estou impaciente por saber se a querida Maria está melhor. Não a deixes ir à pândega do convento, sem a veres inteiramente boa. E o Zézé? Está restabelecido? Já circula? Eu tenho muitas saudades se casa - e este tempo triste e sombrio mais acentua a sensação de solidão. Seria um tempo bom para trabalhar - mas o mar, o vento, a seca, e como sempre a mudança de meio, têm-me tornado estúpido. A isso acresce a preguiça. De modo que têm sido dias muito moles e vazios e bêtes.
Tão preguiçoso ando que nem leio os jornais - e o Nabuco é quem me dá o resumo da campanha do Transvaal, d'après os seus jornais ingleses.
Escreve, - tu que tens notícias que me interessam, as de casa: porque só te sei dizer do tempo.
Mil beijos à Maria, Zézé, Tonton, Bébert. Porque não me escrevem? Sem rascunho - ou que mandem o próprio rascunho. Abraços e beijos, ambos de toda a ternura do teu
José
Eça de Queiroz: Correspondência. Organização e notas de A. Campos Matos. Vol II. Lisboa, Caminho, 2008, p. 504-505.
Há qualquer coisa de irreparável neste tipo de disposição, que Eça tão visual e sentidamente descreve. Quase nos contagia. A escrita é muitas vezes assim: contagiante. Como se funcionasse em nós como um vírus.
ResponderEliminarCertamente em Eça isso era apenas um período chamado a acontecer para dar lugar a outra coisa. E resolvia-se à maneira preconizada pelos gregos: o ócio para a criação; o tédio para a criação. Um pouco mais tarde talvez, mas haveria de acontecer, nem que seja, como se vê, através da escrita íntima destas cartas.
Atenção á cronologia: esta carta escreveu-a Eça seis meses antes de morrer.
ResponderEliminarA intuição inicial de irreparabilidade estava, afinal, mais próxima da verdade do que a argumentação que a seguir apresentei no comentário. Não me apercebi de que a carta fora escrita já tão pouco tempo antes da morte de Eça.
ResponderEliminarCARTA A MANUEL
ResponderEliminar"Manuel, tens razão. Venho tarde. Desculpa.
Mas não foi Anto, não fui eu quem teve a culpa,
Foi Coimbra. Foi esta paisagem triste, triste,
A cuja influência a minha alma não resiste.
Queres notícias? Queres que os meus versos falem?
Vá! dize aos choupos do Mondego que se calem
E pede ao Vento que não uive nem gema tanto:
Que, enfim, se sofre, abafe as torturas em pranto,
Mas que me deixe em paz! Ah tu não imaginas
Quanto isto me faz mal! Pior que as sabatinas
Dos "ursos" na aula, pior que beatas correrias
De velhas magras, galopando Ave-Marias,
Pior que um diamante a riscar a vidraça,
Pior eu sei lá, Manuel, pior que uma desgraça!
[...]"
António Nobre, SÓ, Porto, Liv.ª Tavares Martins, 1974, p. 59.