ROMA, PIAZZA NAVONA
Já escrevi algures que aprendi a viajar com a minha mãe,
graças a uma simples frase dela, dita no momento exacto e no local exacto: na
Piazza Navona, em Roma, cerca das seis da tarde e depois de uma hora de chás,
cigarros e contemplação silenciosa da geometria perfeita da praça. Sentindo a
minha impaciência - a impaciência de quem estava em Roma pela primeira vez e
tudo queria ver, sem detença -, ela disse. "Miguel, viajar é olhar."
Nunca me esqueci. Da frase. Do seu significado. Da
obrigatoriedade de olhar. E da Piazza Navona, que, hoje ainda, é o meu lugar
favorito de Roma. Suponho que é assim que uma mãe deve educar um filho e
ensiná-lo a viajar.
Eu viajei muito pouco com ela, muito menos do que qualquer
um dos outros filhos. Imagino que, pelo facto de ser jornalista e na altura
viajar constantemente, ela tenha achado que eu podia voar sozinho. Mas, em cada
viagem minha, exigia sempre que eu lhe contasse tudo à chegada e nunca
dispensava - quando, antes de partir, me ia despedir dela - um sinal da cruz,
que me fazia na testa. Depois, quando eu voltava, ia jantar à casa da Graça e
ela não queria ver fotografias, queria apenas que lhe contasse o que tinha
visto. Nunca soube que fotografasse em viagem, limitava-se a olhar, para depois
guardar e poder contar: guardar para ela, contar para os outros. O mesmo exigia
de mim e eu aprendi assim que um viajante é o que guarda nos olhos o que viu e
transmite por palavras o que os outros não viram. Em 1966, segundo lembro, ela
foi ao Brasil - numa viagem que então era meio-aventurosa, quase a de Gago
Coutinho, com paragens aéreas onde se podia. E uma delas foi no Recife, de onde
me mandou um postal que, inevitavelmente, me chegou depois dela própria. O seu
deslumbramento com a viagem era tamanho que, nada mais tendo visto que o
aeroporto do Recife, escreveu: "na luz da madrugada e da manhã nascente, o
Recife parece-me um fruto roxo". Anos mais tarde, muitos anos mais tarde,
ao desembarcar no Recife pela primeira vez, procurei em vão a luz e o cheiro do
fruto roxo que ela tinha visto. Aprendi também que vemos o que vemos, o que
queremos ver e o que ninguém mais enxerga. Vemos tanto mais quanto a nossa
disponibilidade de ver: viajamos para dentro de nós, primeiro que tudo.
Que belo testemunho!
ResponderEliminar"Viajar é olhar." Sem dúvida: demorando o olhar...
A ânsia de registar em qualquer tipo de suporte, fotográfico ou outro, a imagem que se vê, receio que impeça esse olhar límpido e próprio, singular.
A arte de olhar. A arte de viajar.
SERTÃO
ResponderEliminar(...)
Quando verrmeia no serrtão disponta a Lua
logo n'alma onde frutua também rubra naisce a dorr.
E a Lua sobe e o sangue muda em craridade
E a nossa dorr muda em saudade
Branca, assim da mesma corr (...)
Catullo da Paixão Cearense, MEU SERTÃO, Rio de Janeiro, Bedeschi, 1954.