sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Viajar com Sophia (1). Miguel Sousa Tavares


ROMA, PIAZZA NAVONA

Já escrevi algures que aprendi a viajar com a minha mãe, graças a uma simples frase dela, dita no momento exacto e no local exacto: na Piazza Navona, em Roma, cerca das seis da tarde e depois de uma hora de chás, cigarros e contemplação silenciosa da geometria perfeita da praça. Sentindo a minha impaciência - a impaciência de quem estava em Roma pela primeira vez e tudo queria ver, sem detença -, ela disse. "Miguel, viajar é olhar."
Nunca me esqueci. Da frase. Do seu significado. Da obrigatoriedade de olhar. E da Piazza Navona, que, hoje ainda, é o meu lugar favorito de Roma. Suponho que é assim que uma mãe deve educar um filho e ensiná-lo a viajar.
Eu viajei muito pouco com ela, muito menos do que qualquer um dos outros filhos. Imagino que, pelo facto de ser jornalista e na altura viajar constantemente, ela tenha achado que eu podia voar sozinho. Mas, em cada viagem minha, exigia sempre que eu lhe contasse tudo à chegada e nunca dispensava - quando, antes de partir, me ia despedir dela - um sinal da cruz, que me fazia na testa. Depois, quando eu voltava, ia jantar à casa da Graça e ela não queria ver fotografias, queria apenas que lhe contasse o que tinha visto. Nunca soube que fotografasse em viagem, limitava-se a olhar, para depois guardar e poder contar: guardar para ela, contar para os outros. O mesmo exigia de mim e eu aprendi assim que um viajante é o que guarda nos olhos o que viu e transmite por palavras o que os outros não viram. Em 1966, segundo lembro, ela foi ao Brasil - numa viagem que então era meio-aventurosa, quase a de Gago Coutinho, com paragens aéreas onde se podia. E uma delas foi no Recife, de onde me mandou um postal que, inevitavelmente, me chegou depois dela própria. O seu deslumbramento com a viagem era tamanho que, nada mais tendo visto que o aeroporto do Recife, escreveu: "na luz da madrugada e da manhã nascente, o Recife parece-me um fruto roxo". Anos mais tarde, muitos anos mais tarde, ao desembarcar no Recife pela primeira vez, procurei em vão a luz e o cheiro do fruto roxo que ela tinha visto. Aprendi também que vemos o que vemos, o que queremos ver e o que ninguém mais enxerga. Vemos tanto mais quanto a nossa disponibilidade de ver: viajamos para dentro de nós, primeiro que tudo.

2 comentários:

  1. Que belo testemunho!

    "Viajar é olhar." Sem dúvida: demorando o olhar...

    A ânsia de registar em qualquer tipo de suporte, fotográfico ou outro, a imagem que se vê, receio que impeça esse olhar límpido e próprio, singular.

    A arte de olhar. A arte de viajar.

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  2. SERTÃO
    (...)
    Quando verrmeia no serrtão disponta a Lua
    logo n'alma onde frutua também rubra naisce a dorr.
    E a Lua sobe e o sangue muda em craridade
    E a nossa dorr muda em saudade
    Branca, assim da mesma corr (...)

    Catullo da Paixão Cearense, MEU SERTÃO, Rio de Janeiro, Bedeschi, 1954.


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