sexta-feira, 19 de abril de 2013

No regresso da tua primeira viagem ao estrangeiro. Paul Auster


Há recordações que te são tão estranhas, tão incríveis, tão fora do reino do plausível que tens dificuldade em conciliá-las com o facto de seres a pessoa que passou pelas situações de que estás a lembrar-te. Aos dezassete anos de idade, por exemplo, num voo de Milão para Nova Iorque, no regresso da tua primeira viagem ao estrangeiro (para visitar a irmã da tua mãe em Itália onde vivia havia doze anos) sentaste-te ao lado de uma rapariga de dezoito ou dezanove anos, atraente e muito inteligente, e, depois de uma hora de conversa, passaram o resto da viagem a beijar-se com uma sofreguidão lasciva, apalpando-se apaixonadamente na frente dos outros passageiros, sem a mínima gota de vergonha ou timidez. Parece impossível  que aquilo tenha acontecido, mas aconteceu. Mais estranho ainda foi quando no ano seguinte, na manhã do último dia da tua excursão à Europa, aquela que começou pela travessia do Atlântico num navio de estudantes, entraste num avião no aeroporto de Shannon, na Irlanda, e deste contigo sentado ao lado de outra rapariga bonita. Ao cabo de uma hora de conversa séria sobre livros, faculdades e aventuras de verão, começaram os dois na marmelada, atirando-se um ao outro com tal fúria que acabaram por se cobrir com uma manta, e debaixo da manta as tuas mãos percorreram-lhe o corpo todo e entraram-lhe pelas saias acima, e só graças a uma férrea força de vontade se coibiram de entrar no território proibido da trancada pura e dura. Como pode ter acontecido semelhante coisa? As energias sexuais da juventude são tão poderosas que a simples presença de outro corpo pode servir de indução às relações sexuais? Se fosse hoje não fazias o mesmo, nem sequer ousavas pensar em fazer o mesmo – mas também já não és jovem.

Paul Auster, Diário de Inverno. Lisboa, ASA, 2012, p. 144-145.

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