Sentámo-nos no canto mais afastado [da varanda coberta, com vista de jardins e mar, de um restaurante instalado numa velha mansão colonial da Ilha de Barbados], junto a uma buganvília florida. M pediu camarões gigantes com molho de pimenta doce, e eu uma cebolada de peixe com tempero de ervas e vinho tinto. Falámos do sistema colonial e da espantosa ineficácia dos protectores solar mais potentes. Pedimos dois pudins flã à sobremesa.
Quando os trouxeram, serviram a M uma dose grande mas desconjuntada, com todo ar de se ter virado na cozinha, e a mim uma pequena, mas bem apresentada. Assim que o empregado desapareceu, M trocou os pratos.
- Não me roubes a sobremesa - disse-lhe eu.
- Pensei que preferias o maior - replicou ela, não menos ofendida.
- O que tu queres é ficar com o melhor, e mais nada.
- Nem por sombras, só estava a tentar ser simpática. Deixa de ser tão desconfiado.
- De acordo. Mas devolve-me o meu prato.
E assim, de um instante para o outro, vimo-nos mergulhados num episódio vergonhoso que, a coberto de uma briga infantil, trazia à tona temores de incompatibilidade e de infidelidade.
M devolveu-me o prato com um gesto feroz, engoliu duas ou três colheradas e a seguir pôs a sobremesa de lado. Não dissemos mais nada. Pagámos e metemo-nos no carro de regresso ao hotel. O barulho do motor camuflava a intensidade da nossa cólera. Durante a nossa ausência, o quarto fora limpo e arrumado. Tinham-nos mudado os lençóis. Havia flores em cima da cómoda e toalhas de praia lavadas na casa de banho. Tirei uma da pilha e fui sentar-me na varanda, fechando com força as portas envidraçadas. Os coqueiros projectavam uma sombra amena e as linhas das suas palmas desenhavam formas que iam mudando, de quando em vez, ao sabor da brisa da tarde. Mas não experimentei o mais pequeno prazer com a sua beleza. Desde a batalha em torno dos pudins flã, travada havia já algumas horas, não voltara a sentir qualquer satisfação, nem de ordem estética nem de ordem material. As toalhas macias, as flores e aquela vista aprazível, tudo passara a ser diferente. O meu humor recusava o concurso de pontos de apoio no exterior; mais ainda, sentia-se como que insultado pela perfeição das condições meteorológicas e por churrasco na praia que estava programado para essa noite.
A nossa desgraça da tarde, dom o cheiro das lágrimas misturado ao do creme solar e ao do ar condicionado, era uma chamada de atenção destinada a lembrar a lógica implacável e estrita a que estados de espirito humanos parecem submeter-se, embora nos demos abolido de, por conta e risco próprios, a ignorarmos quando vemos uma fotografia de um lugar encantador e imaginamos que é impossível não ser a felicidade a condição de uma tal maravilha. Ma a verdade é que a nossa capacidade de descobrirmos felicidade em bens estéticos ou materiais parece depender decisivamente da satisfação preliminar de um repertório de necessidades afectivas psíquicas, entre as quais se incluem a necessidade de compreensão, de amor, de comunicação e de respeito. Não nos será dado gozar - não somos capazes de gozar - do esplendor se jardins tropicais nem do encanto de uma deliciosa construção de madeira na praia, quando, bruscamente, a incompreensão e o ressentimento devastam uma nossa relação íntima.
Alain de Botton, A Arte de Viajar. 3a edição. Lisboa, Publicações Dom Quixote P. 32-33
Sem comentários:
Enviar um comentário