Fernando Távora, como se terá concluído na crónica anterior ("Paris é uma obra de Arte", Região de Leiria de 7 de Março), não se deixou seduzir pelo urbanismo americano, ao qual contrapôs a cidade europeia, quando, em 1960, visitou os Estados Unidos. Frequentemente, esse confronto foi pontuado com a expressa convocação das memórias do arquitecto relativas à cidade portuguesa, cujo paradigma ainda surgia impregnado de ruralidade.
A experiência da estranheza, do desconforto, por vezes da hostilidade perante uma cidade, quem a não sentiu? Joaquim Magalhães e Castro, um viajante já de longa data, contava-me há dias em Macau como, nos anos 90, estrangeiro na China podia ser recebido. Chegou a ter de lutar fisicamente por um quarto de hotel ou um banho nos banhos públicos. E a própria cidade de Macau, que se orgulha de ser uma cidade aberta, pode ser muito fechada para quem nela procura instalar-se, conforme me foi testemunhado por muitos jovens portugueses que ali aportaram um dia (agora com mais frequência).
Curiosamente, Távora não transmitiu essa percepção de resistência ao estrangeiro na sua visita às cidades americanas. "Há uma coisa que me impressiona desde já na América: a falta da noção de 'estrangeiro' que, por exemplo, nós temos bem nítida. Esta noção só surge, suponho, quando se atinge uma estruturação e uma integração perfeitas; ela aqui não existe, creio, porque essa estruturação e integração não existem ainda, embora haja dois grandes valores de unificação: a língua e o nível de vida".
Franz Kafka que, que eu saiba, nunca visitou a América, escolheu precisamente Nova Iorque para cenário do seu romance O Desaparecido (também traduzido com o titulo América, com o qual, aliás, se popularizou).
A Nova Iorque de Kafka é evidentemente imaginária. O que importou ao autor foi identificar a condição de estrangeiro. O desaparecido é o estrangeiro.
Diferentemente do bárbaro, o estrangeiro aspira à integração, ou pelo menos à convivência, e não à destruição da cidade para a qual emigrou.
Kafka representou essa experiência como a de alguém que está em trânsito, um trânsito cujo termo se cumpre desejavelmente no regresso e que vive uma espécie de labirinto, um tema tão caro às ficções de Kafka.
O equivalente da cidade como um labirinto é provavelmente a representação mais forte de quem nela habita como estrangeiro. O labirinto dificulta a passagem. Quem se acha perdido num labirinto procura sempre a saída, embora reconheça que essa procura possa ser demorada e dificultada por inúmeros e imprevistos obstáculos.
Mas o labirinto também esconde. Neste sentido, o labirinto é ou pode ser um refúgio.
Publicado no semanário Região de Leiria, edição de 4 de Abril.
Já tinha lido este seu artigo, porque compro o Região de Leiria na 1.ª quinta-feira do mês só para o ler.
ResponderEliminarGostei do que escreveu. A principal razão prende-se com o facto de a citação, entre tantas, ultrapassar em pouco a meia centena de palavras. Tudo o mais é interpretação e opinião de J.B.Serra. É assim que gosto de o ler.