sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Talvez este livro nos sobreviva a ambos. James Joyce

22 de Dezembro de 1909
44 Fontenoy Street, Dublin

Minha querida Nora,
Envio-te por correio registado, expresso e seguro um presente de Natal. É o melhor que te posso oferecer (embora seja bem humilde, no fim de contas) em troca do teu amor sincero, genuíno e fiel. Pensei em todos os seus pormenores, deitado na cama à noite, ou durante viagens de carro por Dublin, e acho que ficou bem, mas mesmo que não te proporcione mais do que um leve rubor de satisfação, ou um breve sobressalto de alegria no teu coração afectuoso e fiel, eu já sentirei que todo o meu esforço foi altamente recompensado.
Talvez este livro que te envio agora nos sobreviva a ambos. Talvez os dedos de um jovem ou de uma jovem (filhos dos nossos filhos) venham um dia a folhear reverentemente estas folhas de pergaminho, quando os dois amantes cujas iniciais se entrelaçam na capa tenham desaparecido há muito da face da terra. Então, querida, nada restará dos nossos pobres corpos conduzidos pela paixão, e quem sabe onde estarão também as almas que pelos olhos desses corpos mutuamente se contemplavam. Eu pediria que a minha alma fosse espalhada ao vento, se Deus me permitisse pairar para sempre sobre uma estranha e solitária flor azul-escura humedecida pela chuva, erguida ao pé duma sebe silvestre de Aughrim ou Oranmore.

James Joyce, Cartas a Nora. Lisboa. Relógio d'Água, 2012, p. 108-109.

1 comentário:

  1. Como os lugares, o vento, as sebes, são importantes na paixão...

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