É compreensível que um jovem, depois de ter passado a infância com o horizonte monótono do campo (ainda que seja a bonita campagna toscana) e um interminável ano da adolescência preso à cama por causa de uma doença num joelho e a sonhar com os livros de Stevenson e de Conrad que o meu tio me fornecia, é compreensível que esse jovem desejasse partir. Mas o que me decidiu a fazê-lo não foram os romances de viagens longínquas, foi um filme: La Dolce Vita de Frederico Fellini. O retrato da Itália que Fillini dava naquele filme impiedoso não correspondia ao que a Itália queria que um estudante liceal acreditasse. Depois do liceu não me senti com vontade de me inscrever logo na Universidade e preferi, com a cumplicidade do meu pai, ir para Paris. Naquele tempo não havia Erasmus e nós estudantes mantínhamo-nos a lavar pratos, além de que ser auditeur libre na Sorbonne não prometia uma carreira brilhante. Mas Paris trouxe consigo a descoberta do mundo ou pelo menos a descoberta de que o mundo é grande. Não é verdade que o mundo é pequeno. Também não é verdade que seja uma "aldeia global", como pretendem os meios de comunicação. O mundo é grande e diverso. Por isso é tão belo: porque é grande e diverso, e é impossível conhecê-lo todo.
"Estou aqui e ninguém me conhece, sou um rosto anónimo nesta multidão de rostos anónimos, estou aqui como podia estar noutro sítio, é a mesma coisa, e isto dá-me uma grande angústia e uma sensação de liberdade bela e supérflua, como um amor rejeitado" lê-se no conto "Any where out of the world" [Pequenos Equívocos sem Importância, 1985]. Chegar a um lugar: nascer também significa isso. Mas, depois, alguma coisa começa a ficar-nos apertada; então partimos. Embora não seja fácil encontrar um lugar que nos baste. A questão é essa: "conseguir que os lugares nos bastem". Por onde começar?
A literatura - disse um poeta - é a prova de que a vida não basta. Porque a literatura é uma forma mais de conhecimento. É como a viagem: é ima forma mais de conhecimento, várias formas de conhecimento. Muitas coisas podem bastar-nos, e devem bastar-nos, na vida: o amor, o trabalho, o dinheiro. Mas o desejo de conhecer nunca é suficiente, julgo eu. Pelo menos se temos vontade de conhecer.
António Tabucchi, Viagens e Outras Viagens. Lisboa, Dom Quixote, 2013, p. 13-14.
Agrada-me esta comparação entre literatura e viagem, até por razões e circunstâncias próprias.
ResponderEliminarComo é dito no texto, em ambos os casos - na literatura e na viagem - há algo mais que se pede à vida ("a vida não basta").
No entanto, se a literatura é em si mesma uma forma de viajar, não de partir, o que me parece diferença considerável.
Por outro lado, quantas vezes as melhores ideias literárias ocorrem em trânsito, em viagem?
Disso mesmo aqui deixo um testemunho: a descrição de uma experiência de viagem com consequências literárias:
"devia viajar mais vezes, romper porções de território e, sobretudo, sentir a brisa do movimento; as viagens são momentos abertos a qualquer estado afectivo que, em união com a inteligência, levam longe a estrutura de um livro; lembro-me de uma viagem de comboio Paris-Bruxelas, em que nevava. A neve comove-me, e faz-me arguta - tudo me parece muito antigo, ou só para ser usado mais tarde; eu olhava através sem outra razão além do próprio ver; mas subitamente serviu-me de prima óptico, polarizou-se a luz, e empreguei os meios, ou esforços necessários, para chegar a tocar de leve Da Sebe ao Ser."
Maria Gabriela Llansol, "um falcão no punho", Lisboa, 1985. Edições Rolim (p. 123)
Resta dizer, para quem não saiba que Da Sebe ao Ser é o título de um dos livros da autora.