sábado, 31 de agosto de 2013

Cidades mais desejadas. António Tabucchi

Mas também há as cidades do desejo. Reais, mas remotas, muitas vezes inalcançáveis ou marcadas pela nostalgia de um retorno impossível, estão encerradas numa espécie de feitiço que as transfigura até as tornar fantásticas. A pequena cidade de Combray de Proust, na realidade não muito longe de Paris, vive suspensa num tempo perdido. O Maradagal de O Conhecimento da Dor de Carlo Emílio Gadda é sem dúvida alguma uma zona da sua Lombardia Natal, tecida de remorsos, rancores, amores e nostalgia. A Dublin de Joyce, amada e odiada, revivida a partir de Zurique, é, de certo modo fantástica. Como o são a Lisboa de Pessoa, metáfora de um Molhe Absoluto a que o homem aporta para depois partir para o desconhecido, e mais ainda a inalcançável Samarcanda sonhada pelo seu heterónimo Bernardo Soares no Livro do Desassossego.
Talvez as cidades mais desejadas vivam nesta dimensão: de cidades verdadeiras tornaram-se na "ideia" de cidade.

António Tabucchi, Viagens e Outras Viagens. P. 196.

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Estas coisas aprendem-se com o tempo e, sobretudo, viajando. António Tabucchi

Um lugar não é apenas "aquele lugar": aquele lugar somos um pouco também nós. Seja como for, sem o sabermos, trazíamo-lo dentro de nós e um dia, por acaso, chegamos lá. Chegamos no dia certo ou no dia errado, conforme, mas isso não,é responsabilidade do lugar, depende de nós. Depende de como lermos esse lugar, da nossa disponibilidade para o acolhemos dentro dos nossos olhos e dentro da nossa alma, de estarmos alegres ou melancólicos, eufóricos ou disfóricos, de sermos jovens ou velhos, de nos sentirmos bem ou de nos doer a barriga. Depende de quem somos no momento em que chegamos a esse lugar. Estas coisas aprendem-se com o tempo e, sobretudo, viajando. Mas, há muitos anos, quando fiz a minha primeira viagem aos Açores, ainda o não sabia.
"Reconheces-me tu, ar, cheio dos lugares que uma vez foram meus?" É um verso de Rainer Maria Rilke que neste livro é recorrente. Alguém está a regressar a um lugar que conheceu noutros tempos e pede ao ar (o espírito do lugar?) que o reconheça, porque ele próprio não reconhece já esses lugares. Não reconhece o que contemplou noutros tempos nem o que nesse tempo sentia ao contemplar: as suas emoções, o seu eu de então. Cada lugar a que chegamos de viagem é uma espécie de radiografia de nós próprios. Muitas vezes, ingenuamente, tiramos fotografias com a ilusão de levarmos alguma coisa connosco. Mas as imagens são apenas a pele, pura aparência: o que esse lugar provoca em nós ao contemplá-lo e vivê-lo não é fotografável. Acontece o mesmo com os sonhos. Impelidos pelo desejo de comunicar a emoção sentida a alguém e quase com espanto damo-nos conta de que a história daquele sonho era banal, era um sonho como outro qualquer: assim, ao contá-lo, não comunica nenhuma emoção, nem em quem nos escuta nem a nós próprios que o contamos. O que é que tinha então de tão especial para ter provocado tanta emoção? Nada. O importante daquele sonho não era o que acontecia, mas a maneira como o estávamos a viver: o sonho era a nossa própria emoção. Com um lugar é a mesma coisa. Contá-lo não significa descrevê-lo, mas conseguir transmitir, mesmo numa ínfima parte, as emoções que suscitou.

António Tabucchi, Viagens e Outras Viagens. P. 178-179.

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Queria voltar à Grécia. Sophia de Mello Breyner Andersen

Apoderou-se de mim uma fúria de viajar. Mas acima de tudo queria voltar à Grécia, que foi para mim o deslumbramento inteiro e puro e onde me senti livre e com asas. A felicidade grega, a felicidade do mundo objectivo, sem a menor mancha de caso pessoal, é qualquer coisa de inimaginável e da qual só o Homero dá uma ideia.

Carta de Sophia para Jorge de Sena em 1964, citada por António Tabucchi, Viagens e Outras Viagens, 2013, p. 199

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Partir, chegar. António Tabucchi

"Muitas vezes imaginava partir. Via-me a subir para um daqueles comboios durante a noite, sorrateiramente... Levava comigo uma bagagem minúscula, o meu relógio de ponteiros fosforescentes e o meu livro de geografia" diz a personagem de um conto seu, "As tardes de sábado" [O Jogo do Reverso, 1988]. O infinitivo partir que imagens evoca em si? Quando começou a pensar que poderia olhar de novo para a sua vida?

É compreensível que um jovem, depois de ter passado a infância com o horizonte monótono do campo (ainda que seja a bonita campagna toscana) e um interminável ano da adolescência preso à cama por causa de uma doença num joelho e a sonhar com os livros de Stevenson e de Conrad que o meu tio me fornecia, é compreensível que esse jovem desejasse partir. Mas o que me decidiu a fazê-lo não foram os romances de viagens longínquas, foi um filme: La Dolce Vita de Frederico Fellini. O retrato da Itália que Fillini dava naquele filme impiedoso não correspondia ao que a Itália queria que um estudante liceal acreditasse. Depois do liceu não me senti com vontade de me inscrever logo na Universidade e preferi, com a cumplicidade do meu pai, ir para Paris. Naquele tempo não havia Erasmus e nós estudantes mantínhamo-nos a lavar pratos, além de que ser auditeur libre na Sorbonne não prometia uma carreira brilhante. Mas Paris trouxe consigo a descoberta do mundo ou pelo menos a descoberta de que o mundo é grande. Não é verdade que o mundo é pequeno. Também não é verdade que seja uma "aldeia global", como pretendem os meios de comunicação. O mundo é grande e diverso. Por isso é tão belo: porque é grande e diverso, e é impossível conhecê-lo todo.

"Estou aqui e ninguém me conhece, sou um rosto anónimo nesta multidão de rostos anónimos, estou aqui como podia estar noutro sítio, é a mesma coisa, e isto dá-me uma grande angústia e uma sensação de liberdade bela e supérflua, como um amor rejeitado" lê-se no conto "Any where out of the world" [Pequenos Equívocos sem Importância, 1985]. Chegar a um lugar: nascer também significa isso. Mas, depois, alguma coisa começa a ficar-nos apertada; então partimos. Embora não seja fácil encontrar um lugar que nos baste. A questão é essa: "conseguir que os lugares nos bastem". Por onde começar?

A literatura - disse um poeta - é a prova de que a vida não basta. Porque a literatura é uma forma mais de conhecimento. É como a viagem: é ima forma mais de conhecimento, várias formas de conhecimento. Muitas coisas podem bastar-nos, e devem bastar-nos, na vida: o amor, o trabalho, o dinheiro. Mas o desejo de conhecer nunca é suficiente, julgo eu. Pelo menos se temos vontade de conhecer.

António Tabucchi, Viagens e Outras Viagens. Lisboa, Dom Quixote, 2013, p. 13-14.

terça-feira, 27 de agosto de 2013

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

O melhor remédio contra o tédio. Teixeira de Pascoaes

10 de Abril 1926
Lisboa

Queridíssimo amigo [Raul Brandão]:

Não tenho querido interromper os seus trabalhos com palavras minhas.
Jesus Cristo em Lisboa já está concluído? Assim seja!
Eu tenho andado preocupado com o exame para chauffeur. Fi-lo ontem e fiquei aprovado. Tenho, enfim, um modo de vida. Já sou mais do que um simples poeta melancólico. O que lhe digo é que é um exercício admirável guiar um carro! Faz um grande bem à saúde e é o melhor remédio contra o tédio. Os autos deviam vender-se nas farmácias e serem receitados pelos médicos, como as águas do Gerês ou do Vidago.
Agora preparo as minhas coisas para partir. Estou desejoso de me encontrar na minha aldeia, ao longo daquelas estradas ermas, numa corrida ideal, mas temperada pela prudência, para não haver quebra de ritmo nem de pernas.
Depois da sua partida, York House ficou bastante deserta. Só o Justino e a sua eterna mocidade espalha alguma luz no escuro interior deste convento. O Eça de Queirós continua a ser a mesma vela de cera de pavio mortiço e não sei que mais! Falta-me a língua. As meninas italianas já divagam, a estas horas, na Via Ápia e sob o Arco de Trajano, a recitar versos em grego aos fantasmas de Horácio e de Virgílio. A porta do seu quarto continua fechada. Nunca mais a sua figura me apareceu para imos tomar um café à Brasileira! O que me vale é estar próxima a minha partida. Tenciono sair daqui, na quinta-feira, de manhã, dia 15. Depois, aparecerei aí, para tratarmos, no Porto, da Renascença. Recebi uma carta muito interessante do Vicente Risco sobre a questão galaico-portuguesa, que vem ao encontro do nosso pensamento.
Todos os meus lhe recomendam muitíssimo e à Ex.ma Senhora D. Angelina. O Henrique envia-lhe muitas saudades e tem continuado a trabalhar no Poema, sempre admirável. Espero que ele vá comigo. Assim seja.
Abraço-o com a maior amizade,
Joaquim [Teixeira de Pascoaes]

Raul Brandão - Teixeira de Pascoaes: Correspondência. Recolha, transcrição, actualização de texto, introdução e notas de António Mateus Vilhena e Maria Emília Marques Mano. Lisboa, Quetzal Editores, 1994, p. 139-140.

sábado, 24 de agosto de 2013

Volto atrás nesta viagem. António Zambujo


Em quatro luas
À janela corre o tempo
Na memória o esquecimento
E a vontade de ficar
Em teus braços distraídos
Entreabertos nos sentidos
Do teu corpo a meditar

O desejo que esqueci
Dorme agora ao pé de ti
No teu sonho a murmurar
Guardo a luz da tua pele
Duas rosas, vinho e mel
Quatro luas sobre o mar

Volto atrás nesta viagem
À procura da coragem
Que renasce de te ver
No regresso da saudade
Eu encontro a felicidade
Que por ti vou aprender

Aldina Duarte/António Zambujo

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Talvez este livro nos sobreviva a ambos. James Joyce

22 de Dezembro de 1909
44 Fontenoy Street, Dublin

Minha querida Nora,
Envio-te por correio registado, expresso e seguro um presente de Natal. É o melhor que te posso oferecer (embora seja bem humilde, no fim de contas) em troca do teu amor sincero, genuíno e fiel. Pensei em todos os seus pormenores, deitado na cama à noite, ou durante viagens de carro por Dublin, e acho que ficou bem, mas mesmo que não te proporcione mais do que um leve rubor de satisfação, ou um breve sobressalto de alegria no teu coração afectuoso e fiel, eu já sentirei que todo o meu esforço foi altamente recompensado.
Talvez este livro que te envio agora nos sobreviva a ambos. Talvez os dedos de um jovem ou de uma jovem (filhos dos nossos filhos) venham um dia a folhear reverentemente estas folhas de pergaminho, quando os dois amantes cujas iniciais se entrelaçam na capa tenham desaparecido há muito da face da terra. Então, querida, nada restará dos nossos pobres corpos conduzidos pela paixão, e quem sabe onde estarão também as almas que pelos olhos desses corpos mutuamente se contemplavam. Eu pediria que a minha alma fosse espalhada ao vento, se Deus me permitisse pairar para sempre sobre uma estranha e solitária flor azul-escura humedecida pela chuva, erguida ao pé duma sebe silvestre de Aughrim ou Oranmore.

James Joyce, Cartas a Nora. Lisboa. Relógio d'Água, 2012, p. 108-109.

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Devo perder a tua carta de hoje. James Joyce

27 de Novembro de de 1909
Dublin

Querida Nora,
Parto hoje à noite, dentro de momentos, para Belfast, e devo perder a tua carta de hoje. Escrevo-te amanhã, quando regressar. Sonha comigo. Teu amante
Jim

James Joyce, Cartas a Nora. Lisboa. Relógio d'Água, 2012, p. 84

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Dublin é uma cidade detestável. James Joyce

2 de Setembro de 1909
44 Fontenoy Street, Dublin

Querida Nora,
Não tive carta tua hoje e espero que não me tenhas escrito para Galway. Esqueci-me de te dizer para não o fazeres.
Estou num estado de confusão e fraqueza deploráveis, por ter feito o que te disse. Quando acordei, hoje de manhã, e me lembrei da carta que te escrevi ontem à noite, senti repugnância por mim mesmo. Contudo, se leres todas as minhas cartas desde o início poderás formar uma ideia do que sinto por ti.
Não houve um único dia destas minhas ferias que me tivesse dado prazer. A tua mãe reparou no meu hábito de suspirar e disse-me que isso me iria dar cabo do coração. Suponho que não me faça bem.
espero que andes a tomar cacau todos os dias e que assim engordes um pouco. Espero que saibas porque desejo isso.
Estou muitíssimo preocupado contigo, comigo, com a viagem de regresso e com a Eva. Espero que o Stannie me mande o suficiente para ambos.
Dublin é uma cidade detestável e as pessoas aqui repugnam-me profundamente. Estou tão agitado que quase não consigo comer nada.
Quando é que acaba esta maldita coisa? Quando é que poderei partir? Tenho o cérebro vazio. Estou incapaz de te escrever o que quer que seja esta noite.
Nora, meu "verdadeiro amor", tu tens mesmo de tomar conta de mim. Como é que me deixaste chegar a este estado? És capaz de me aceitar como sou, com os meus pecados e as minhas loucuras, e proteger-me da infelicidade? Se não o fizeres, sinto que a minha vida se vai desfazer em bocados. Hoje tive uma ideia mais louca do que o habitual. Pensei que gostava de ser chicoteado por ti. Gostava de ver os teus olhos a brilharem de cólera.
[...]
Jim

James Joyce, Cartas a Nora. Lisboa. Relógio dÁgua, 2012, p. 59-60

terça-feira, 20 de agosto de 2013

Provavelmente até no Porto. Manuel António Pina

Uma cidade como esta

Para que conste, este cronista não nasceu em sítio nenhum

Clamam alguns ter nascido em determinado sítio, e daí reivindicam incertos orgulhos e pergaminhos. No Porto, por exemplo. Ou em Uagadugu. Ou em Tegucigalpa. Eu não vejo por que alguém possa pretender aproveitar do simples facto de ter nascido, tanto mais tratando-se, o nascimento, de um acontecimento para o qual o nascido apenas terá concorrido com uns vagos movimentos peristálticos, visto que o trabalho duro foi todo presumivelmente da mãe... E tanto mais que, também presumivelmente, ninguém lhe terá perguntado antes de nascer acerca do lugar onde o sucesso haveria, segundo a sua vontade, de dar-se. Se foi algo que não desejou nem quis e para o qual nada fez, porque haverá alguém de reivindicar o que quer que seja por ter sido desembolsado num determinado lugar? Mais se justificará então que o faça quem, em vez de simplesmente nascer num lugar, nele se tenha a si mesmo nascido, por decisão da vontade ou por indecisão do coração.
É público e notório que nascer é uma ocorrência que acontece a muita gente e nas mais dispersas latitudes.Provavelmente até no Porto. A misteriosa circunstância de tal facto, na generalidade dos casos, ocorrer no tempo e no lugar, leva a que qualquer nascido, até o mais desprovido, tenha por atributos ao menos um certo sítio e uma certa data, justamente por isso ditos "de nascimento". E se há quem possa reivindicar privilégios por ter nascido num determinado sítio (uma cidade, um país, um continente) também certamente haverá quem o possa fazer por, e a título de exemplo, ter nascido em 17 de Agosto de 1921 e mais nas particularidades horárias que tiverem sido as do caso.
Para que conste, este cronista não nasceu em sítio nenhum. Alguém, no caso a sua distante mãe, o nasceu onde ela calhou de estar, ou onde conseguiu chegar quando se lhe romperam vivamente as águas. Depois disso, ele próprio a si mesmo se foi nascendo em diversos sítios, uns exteriores outros interiores. Um deles, simultaneamente exterior e interior, foi o Porto. Aqui se nasceu ele, adolescente primeiro, adulto depois, ao longo de muitos e desencontrados anos, felizes uns, impenitentes outros, entre memórias, medos, exaltações, rostos, desejos, e tudo aquilo de que é cegamente feita e desfeita essa respirada coisa que é a vida. Tudo o que de si sabe, e também algumas coisas que não sabe, está preso a estas pedras, a estas ruas, a estas fachadas. E um dia, depois de morto, ele próprio há-de ser pedra, volúvel pedra, desta pedra, e há-de continuar a andar por aí nascendo-se - oxigénio, hidrogénio, carbono, azoto - por esta gente, por estes rumores de folhas, por estes frutos. Então será, não do Porto, mas o próprio Porto, ou ao menos uma parte, material e extrema, dele; ou uma cidade como esta.
Outros escreverão cânticos de amor, outros louvações ou imprecações. A ele basta-lhe escrever-se a si mesmo, inscrever-se. Basta-lhe lembrar. Basta-lhe acordar cada manhã sabendo que está em casa, conhecendo as paredes, os móveis, os livros. Ouvir os seus mortos, tocar os seus vivos.Quem o culpará, pois, se ficar em casa ou se, tendo partido, quiser regressar? E quem estranhará se, chamando-o pelo seu nome, ele se voltar e o seu rosto for como um rio passando?

Manuel António Pina
[Crónica publicada na revista Visão em 22 março de 2001]

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Morre lentamente quem não viaja. Pablo Neruda

Muere lentamente quien no viaja,
quien no lee, quien no escucha música,
quien no halla encanto en si mismo.

Muere lentamente quien destruye su amor propio,
quien no se deja ayudar.

Muere lentamente quien se transforma en esclavo del habito, repitiendo todos los días los mismos senderos,
quien no cambia de rutina,
no se arriesga a vestir un nuevo color
o no conversa con desconocidos.

Muere lentamente quien evita una pasión
Y su remolino de emociones,
Aquellas que rescatan el brillo en los ojos
y los corazones decaidos.

Muere lentamente quien no cambia de vida cuando está insatisfecho con su trabajo o su amor,
Quien no arriesga lo seguro por lo incierto
para ir detrás de un sueño,
quien no se permite al menos una vez en la vida huir de los consejos sensatos…
¡Vive hoy! - ¡Haz hoy!
¡Ariesga hoy!
¡No te dejes morir lentamente!
¡No te olvides de ser feliz!

Pablo Neruda

domingo, 18 de agosto de 2013

Marinheiro sem mar. Sophia de Mello Breyner Andersen


Marinheiro Sem Mar

Longe o marinheiro tem
Uma serena praia de mãos puras
Mas perdido caminha nas obscuras
Ruas da cidade sem piedade

Todas as cidades são navios
Carregados de cães uivando à lua
Carregados de anões e mortos frios

E ele vai balouçando como um mastro
Aos seus ombros apoiam-se as esquinas
Vai sem aves nem ondas repentinas
Somente sombras nadam no seu rastro.

Nas confusas redes do seu pensamento
Prendem-se obscuras medusas
Morta cai a noite com o vento

E sobe por escadas escondidas
E vira por ruas sem nome
Pela própria escuridão conduzido
Com pupilas transparentes e de vidro

Vai nos contínuos corredores
Onde os polvos da sombra o estrangulam
E as luzes como peixes voadores
O alucinam.

Porque ele tem um navio mas sem mastros
Porque o mar secou
Porque o destino apagou
O seu nome dos astros
Porque o seu caminho foi perdido
O seu triunfo vendido
E ele tem as mãos pesadas de desastres

E é em vão que ele se ergue entre os sinais
Buscando a luz da madrugada pura
Chamando pelo vento que há nos cais

Nenhum mar lavará o nojo do seu rosto
As imagens são eternas e precisas
Em vão chamará pelo vento
Que a direito corre pelas praias lisas

Ele morrerá sem mar e sem navios
Sem rumo distante e sem mastros esguios
Morrerá entre paredes cinzentas
Pedaços de braços e restos de cabeças
Boiarão na penumbra das madrugadas lentas


E ao Norte e ao Sul
E ao Leste e ao Poente
Os quatro cavalos do vento
Sacodem as suas crinas

E o espírito do mar pergunta:

“Que é feito daquele
Para quem eu guardava um reino puro
De espaço e de vazio
De ondas brancas e fundas
E de verde frio?”

Ele não dormirá na areia lisa
Entre medusas, conchas e corais

Ele dormirá na podridão
E ao Norte e ao Sul
E ao Leste e ao Poente
Os quatro cavalos do vento
Exactos e transparentes
O esquecerão

Porque ele se perdeu do que era eterno
E separou o seu corpo da unidade
E se entregou ao tempo dividido
Das ruas sem piedade.

Sophia de Mello Breyner Andersen

sábado, 17 de agosto de 2013

O frio especial das manhãs de viagem. Álvaro de Campos

O frio especial das manhãs de viagem,
A angústia da partida, carnal no arrepanhar
Que vai do coração à pele,
Que chora virtualmente embora alegre.

Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993). P. 87.

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Repouso na fuga para o Egipto. João Bénard da Costa

O tema costuma ser pintado à luz do dia ou à luz do entardecer. No óleo de Elsheimer (se há, não me lembro de outra representação semelhante) a Sagrada Família descansa à noite. Aliás, não é ela, quase toda no escuro, quem se impõe a atenção, embora esteja no centro da placa. Em noite tão cerrada, em meio a tão brumoso e manso bosque, duas fontes de luz convocaram-me primeiro. À esquerda, a fogueira acesa por uns quantos pastores, que ainda não repararam na aproximação dos foragidos, concentrados numa labuta mais tardia. À direita, a lua muito cheia, reflectida nas águas de um lago, tão redonda no céu, onde acabou de nascer, como nas águas onde se começou a reflectir. Só depois reparei numa terceira fonte que noctiluz. É uma tocha na mão de S. José, que provavelmente lhe serviu para guiar os passos do burrito, depois do escurecer e antes do nascimento da lua. Só então observei que, sem essa tocha, pouco visível e virada para o solo, nem veríamos a Virgem, que ele se prepara para ajudar a descer, nem o Menino que traz ao colo. O luar ainda não chegou até eles e grandes árvores, muito frondosas, interpõem-se entre eles e a fogueira dos camponeses. As copas das árvores formam uma diagonal que desce da esquerda alta, onde estão os pastores, até à direita baixa das águas do lago. Diagonal paralela à Via Láctea que se vê no céu. Mas a Sagrada Família vem da direita e seguirá para a esquerda, depois de passar a noite, ali, onde há água para beber e onde não se descortina sinal de perigo.
Adam Elsheimer, The Rest on The Flight into Egypt. 1609

O único Evangelista que refere essa fuga é São Mateus. Após descrever a visita dos Magos e antes de contar do massacre dos inocentes, diz: "Depois que partiram, o Anjo do Senhor apareceu em sonhos a José e disse-lhe: 'Levanta-te, toma o Menino e Sua Mãe e foge para o Egipto. Fica lá até eu mandar, pois que Herodes procura o Menino para o matar. José levantou-se, tomou de noite o Menino e Sua Mãe e retirou-se para o Egipto, onde ficou até à morte de Herodes. Assim se cumpriu o oráculo profético do Senhor: "Do Egipto, chamei o meu filho" (Mt. I, 2, 13-15). Mas o episódio do descanso, que tanto inspirou os pintores, não é referido. A inspiração veio-lhes de um apócrifo, o chamado Evangelho do Pseudo-Mateus, também conhecido como Evangelho da Infância. Nele se lê:
"Dois dias depois após a partida, aconteceu que Maria, no deserto, sofreu com o excessivo calor do sol e, vendo uma palmeira, desejou repousar um pouco à sombra dela. José apressou-se a conduzi-la até à palmeira e ajudou-a a descer da montada. Quando Maria se sentou, levantou os olhos para a folhagem da palmeira, viu-a carregada de frutos e disse: "Oh, se fosse possível que eu comesse os frutos desta palmeira!". José disse-lhe: " Mulher, o teu desejo espanta-me, pois bem vês como a palmeira é alta. Tu pensas nos frutos da palmeira, eu penso na água que começa a escassear nos nossos odres e não sei onde os encher para extinguir a nossa sede." Então, o Menino Jesus, sentado ao colo de Sua Mãe, a Virgem, disse à palmeira: "Árvore, inclina-te e reconforta a minha mãe com os teus frutos." Palavras não eram ditas, a palmeira inclinou-se até aos pés de Maria e, depois de colhidos os frutos que nela estavam, todos se reconfortaram. Mas após todos os frutos terem sido colhidos, a árvore continuou pendente e, esperando, para se levantar, ordens daquele que lhe tinha ordenado que se inclinasse. Então Jesus disse-lhe: 'Levanta-te, palmeira, fortifica-te e junta-te às árvores que possuo no paraíso do Meu Pai. Faz brotar das tuas raízes fontes ocultas, donde corra a água que nos sacie'. Imediatamente, a palmeira se levantou e das suas raízes brotou água límpida, fresca e dulcíssima". Se o texto serviu de inspiração, nunca foi tomado muito à letra, dada a heterodoxia da origem. Mas as palmeiras são árvores constantes em quase todos os "repousos na fuga para o Egipto", bem como fontes, lagos, riachos que não faltavam com água a quem tinha que atravessar desertos.

João Bénard da Costa, "A noite de Ceres", in Crónicas: Imagens Proféticas e Outras. 2º vol. Lisboa, Assírio & Alvim, 2010, p. 120-121.

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

De Marc Augé a Maria Gabriela Llansol. Eduardo Prado Coelho

Qual a tese principal do livro [Non Lieux: Introduction à une Anthropologie de la Surmodernité]? Marc Augé vai começar por definir os lugares antropológicos - que são aqueles que fazem sentido para quem lá vive (assistimos a uma espécie de privatização de "lugares de memória") e por isso mesmo são princípios de inteligibilidade para o antropólogo que os observa. Como defini-los? Por três características: são lugares que sustentam uma identidade, que permitem desenvolver estruturas de relação (isto é, o confronto com o Outro) e que têm uma estabilidade histórica regulada por festas, comemorações, rituais, monumentos. Em torno de lugares antropológicos pode-se instituir uma rede de referências, através de itinerários, encruzilhadas, centros, que são formas de interferência entre a temática individual e a temática colectiva.
E assim chegamos ao ponto fundamental: "Se um lugar se pode definir como gerador de identidade, relacional e histórico, um espaço que se não possa definir como gerador de identidade, nem como relacional, nem como histórico, será então um não-lugar. A hipótese defendida é que a sobre-modernidade é produtora de "não-lugares". Estamos assim num mundo destinado " à individualidade solitária, à passagem, ao provisório e ao efémero.
Aliás o espaço do viajante é o arquétipo do não-lugar. E se os lugares antropológicos criam social-orgânico, os não-lugares desenvolvem um espécie de contratualidade solitária.
Pergunta: será que pela leitura de certos escritores mágicos (como a Maria Gabriela Llansol) seremos capazes de reinventar o suporte vivo de lugares como a casa, o jardim, o pinhal, o mar, o quarto?

Eduardo Prado Coelho, Tudo o Que Não Escrevi. Diário II (1992). Vol. 2. 2a edição. Lisboa, Asa, 2008, p. 22-23.

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Para Enid o mundo resume-se a Inglaterra. Alice Vieira

Sente que o casamento não vai bem.
Decidem então fazer uma viagem, para ambos se afastarem por algum tempo de todas as pressões, das editoras, dos prazos a cumprir, da vida social, do clima de Inglaterra.
Em Outubro de 1930, embarcam no Stella Polaris, num cruzeiro que os há-de levar à Ilha da Madeira e às ilhas Canárias, com passagem por Lisboa.
Enid não é grande amante de viagens.
Nunca há-de ser.
Para ela, o mundo resume-se a Inglaterra. E os estrangeiros são sempre pessoas que bebem demais, que falam demais (e mal...), e com duvidosos hábitos de higiene.
"Onde quer que eu vá, e seja o que for que eu veja noutros países, sei sempre que gosto muito mais de Inglaterra", escreve numa das suas crónicas no Teacher's World (Outubro de 1930).
E ela que, com a descrição de um vulgar jardim, consegue encher páginas e páginas; que é uma conhecedora por excelência de plantas, pássaros e animais; que herdou do pai a paixão pela natureza - tem apenas uma breve descrição da Madeira, na carta semanal aos seus leitores (que publica assim que regressa) afirmando tratar-se do "lugar mais bonito que se possa imaginar", com "trepadeiras de um vermelho em brasa, árvores com flores roxas e casas pintadas a branco, amarelo, rosa e azul". Conta que desceu a encosta numa espécie de trenó - e publica a fotografia.
Da passagem por Lisboa guarda apenas a má recordação de ter sido "quase morta pelo pior motorista do mundo", de " não haver pássaros nas ruas porque os portugueses matam-nos e comem-nos", e do espectáculo de "cães e cavalos magros e mal tratados", terminando com uma exclamação dirigida aos pequenos leitores: "Bobs tem muita sorte em ser um cão inglês, em vez de um cão português, não acham?"

Alice Vieira, O Mundo de Enid Blyton. Lisboa, Texto, 2013, p. 65-66.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

Sonhava. Jean-Arthur Rimbaud

Sonhava cruzadas, viagens a descobertas que não deixaram crónica, repúblicas sem história, lutas religiosas esmagadas, revoluções de costumes, migrações de raças e continentes: acreditava em todas as magias.

Jean-Arthur Rimbaud, Uma Época no Inferno. Versão portuguesa, prefacio e notas de Mário Cesariny de Vasconcelos. Lisboa, Portugália Editora, 1960, p. 63-64.

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

domingo, 11 de agosto de 2013

sábado, 10 de agosto de 2013

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Nadir: em Chaves ou em Paris. Fernando Guedes

Só que, na verdade, o que se ia passando de menos espectacular, desde 1943 até 1950, era a abertura organizada da pintura portuguesa a uma modernidade autêntica e atuante.
Mas Nadir nem sempre esteve fisicamente presente. "Onde está Nadir?", perguntava-se, e a resposta era sabida: "Em Chaves ou em Paris". Mesmo que não estivesse em Chaves ou em Paris, era num desses locais que deveria estar.

Fernando Guedes, Nadir Afonso, Lisboa, Verbo, s/d. [1964?]

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Heffman não me abandone! Lygia Fagundes Telles

Heffman, a personagem principal da peça, era um estrangeiro que vinha de longe (Europa) e entrava assim como um facho de luz em meio daqueles jovens desorientados e perplexos, a perplexidade estava dentro e fora do palco. Assumindo a missão de fazer crescer (espécie de fermento, o próprio nome sugeria) aquela massa desencantada, depois de orientar e indicar caminhos, imprevistamente, assim como chegou o misterioso Heffman seguia para outras aventuras, viajante sem bagagem, Adeus, adeus! Antes deixava-se amar por todos, especialmente pela mocinha, uma pequena estudante sonhadora, desesperada porque vai perdê-lo: Heffman não me abandone! eu teria que dizer na ultima cena.
[...]
Tive toda a liberdade para ir levando a minha personagem, isso até aquela noite quando depois do ensaio ele [Alfredo Mesquita] me fez um sinal, queria falar comigo. E em voz baixa quis saber por que eu dizia Heffman, não me abandone! assim num tom de quem pede uma laranjada. É preciso botar mais força nessa súplica que deve ser pungente, é o seu amado que está indo embora, você não vai vê-lo nunca mais! Nunca mais!

Lygia Fagundes Telles, "Heffman", in Invenção e Memória. Nova edição. São Paulo, Companhia das Letras, 2009, p. 51-52.

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Dois limões em férias. António Dacosta


António Dacosta, Dois limões em férias. 1983. Óleo sobre tela.

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Dar a distinção entre o mar e água. João Miguel Fernandes Jorge

A pintura torna-se assim um caminho aberto ao infinito; as suas idas e vindas são ilusórias. Ela tem em si o ponto de partida para os extremos que o "dizer" permite, a cor consegue o que só na poesia o verso sabe fazer: dar a distinção entre o mar e água, tocar a diferença do chegar e do partir sobre a circunferência. A pintura de Dacosta vive desta complementaridade da imagem.

João Miguel Fernandes Jorge, Um Quarto Cheio de Espelhos, Lisboa, Quetzal Editores, 1987.

domingo, 4 de agosto de 2013

Chamo uma vez mais pelo Anjo Sublime para que ele me leve pelo caminho que corta o declive. Maria Gabriela Llansol

Porque toda a manhã creio que atravessei a abóbada da solidão humana; que um som, a realidade autêntica da língua, chama, por um caminho ladeado de barreiras, o seu génio animal. Nessa abóbada, há imaterial de grande qualidade que difunde o medo-fonte; poucos seres humanos têm inteligência afectiva. Chamo uma vez mais pelo Anjo Sublime para que ele me leve pelo caminho que corta o declive. Se eu soubesse qual era a verdadeira natureza do medo - o que ele nos ensina, e faz perder - morreria desta morte menos vezes; assim assombro os meus animais com esta voz alta do meu pensamento,
e digo-lhes
"apareceram os primeiros rebentos à árvore".
Ou ainda,
"a morte é dar como verdadeiro o que é".

Maria Gabriela Llansol, Cantileno. Lisboa, Relógio d'Água, 2000, p. 47.

sábado, 3 de agosto de 2013

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

quinta-feira, 1 de agosto de 2013