terça-feira, 28 de maio de 2013

Na cidade. Mia Couto

Quando ouviu dizer que eu ia à cidade, Vovó Ndzima emitiu as maiores suspeitas:
- E vai ficar em casa de quem?
- Fico no hotel, avó.
- Hotel? Mas é casa de quem?
Explicar, como? Ainda ensaiei: de ninguém, ora. A velha fermentou nova desconfiança: uma casa de ninguém?
- Ou melhor, avó: é de quem paga - palavreei, para a tranquilizar.
Porém só agravei - um lugar de quem paga? E que espíritos guardam uma casa como essa?
[...] E franziu a voz:
- E, lá, quem lhe faz o prato?
- Um cozinheiro, avó.
-Como se chama esse cozinheiro?
Ri, sem palavra. Mas, para ela, não havia riso, nem motivo. Cozinhar é o mais privado e arriscado acto. No alimento se coloca ternura ou ódio. Na panela se verte tempero ou veneno. Quem assegurava a pureza da peneira e do pilão? Como podia deixar eu essa tarefa, tão íntima, ficar em mão anónima? Nem pensar, nunca tal se viu, sujeitar-se a um cozinhador que nem o rosto se conhece.
- Cozinhar não é serviço, meu neto - disse ela - Cozinhar é um modo de amar os outros.

Mia Couto, O Fio das Missangas. Lisboa, Caminho, 2004, p. 127-128.

1 comentário:

  1. Sem dúvida!
    Ler textos como este é um consolo, uma felicidade. Põe-nos de bem com os outros e connosco. Faz-nos acreditar.
    Dá a impressão de que nos sentimos ser pessoas melhores.
    Muito obrigada!
    - Isabel X -

    ResponderEliminar