quarta-feira, 29 de maio de 2013

Antes de um agorinha. Mia Couto

Meu avô, nesse dias, me levava rio abaixo, enfilado em seu pequeno concho. Ele remava, devagaroso, somente raspando o remo na correnteza. o barquito cabecinhava, onda cá, onda lá, parecendo ir mais sozinho que um tronco desabandonado.
- Mas vocês vão onde?
Era  a aflição da minha mãe. O velho sorria. Os dentes, nele, eram um artigo indefinido. Vovô era dos que se calam por saber e conversam mesmo sem nada falarem.
- Voltamos antes de um agorinha, respondia.
Nem eu sabia o que ele perseguia.

Mia Couto, Estórias Abensonhadas. Lisboa, Caminho, 1994. p. 13

10 comentários:

  1. Mia Couto já fez mais pela lusofonia que algum acordo ortográfico algum dia fará. Isto mesmo tive ocasião de lhe dizer pessoalmente. Antepôs ao português “perfeito”, um português “imperfeito”, com uma sonoridade africana que ele próprio (re)inventou. E não houve assimilação de conceitos, não houve síntese, sobrevivem as duas formas, numa perspetiva dialética interessantíssima. Assim ampliou a língua e provou que o português “imperfeito” na sonoridade africada, pode ser de uma extraordinária riqueza poética, escrevendo em prosa.
    Por sua vez o acordo ortográfico do “nosso descontentamento” é redutor e gera dupla grafia.

    A propósito(?), tenho-me perguntado porque é que este blogue de viagens não se chamará "Portofólio ..."

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  2. Aqui escreve-se segundo o acordo ortográfico em vigor quando aprendi a escrever na língua materna.

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  3. Embora antiacordo, por razões várias (para além das já apontadas) tento aplicá-lo, porque o meu tempo é hoje.
    Peço-lhe desculpa pelo constrangimento que os meus comentários, escritos "à nova moda", lhe possam ter causado.

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  4. Sem constrangimento, só respondi à pergunta que me fez sobre o portefolio. Não é assim que se escreve?

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  5. A minha hipotética questão não passava de uma liberdade ortográfica, nascida do encanto que manifesta pela cidade do Porto e do facto de até o super-homem, por exposição à Kryptonite, precisar de um porto de abrigo para retemperar as forças. É claro que os invulneráveis dispensam banalidades desse tipo. :)

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  6. O Porto já dispõe, por mérito próprio, de um rico e admirável portefólio. Dispensa o meu humilde contributo. Com ou sem trocadilhos

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  7. Não pense, cara Isabel Soares, que não prezo sobremaneira os seus comentários, sinal de interesse e prova de sabes vários, que muito valorizam este blogue. Mesmo se nao estou de acordo com uma ou outra observação sua, ou reajo a uma ou outra provocação mais ligeira, nem por isso lhe fico menos grato. Estou consciente do privilegio que é contá-la entre os meus leitores críticos.

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  8. Vá lá saber-se porquê (acho que nem o João sabe), possuo esse terrível “dom” de o indispor, estando longe de mim a intenção de o fazer zangar. Do que me é dado conhecer de si, aprecio-o como pessoa, dada a sua generosidade, simpatia, modéstia, afabilidade e disponibilidade em relação aos outros, assim como o admiro como intelectual pelas intervenções assertivas e inovadoras que já tive ocasião de testemunhar e pelo êxito das iniciativas que superiormente orientou. Acho que isto mesmo, se não o escrevi já por aqui, pelo menos já lho terei dito.
    Posto isto o que aprendi com os seus “ataquinhos de mau humor”? Independentemente de me parecer que o João seriamente zangado deve ser um “osso duro de roer” (peço que releve a forma pouco académica da expressão) a única constatação que faço é a de que por mais educado e amável que se seja, por mais desenvolvida que esteja aquela parte do cérebro onde a razão se aloja e nos distingue dos outros primatas, coexiste aquele sítio bem primitivo e recôndito onde se situam as emoções, que funcionando de forma quase autónoma, foge ao mais apurado controlo da razão. Apesar de todo o seu esforço, acontece também consigo e depois, dói-se da fúria ligeira que o atacou e faz o seu ato de contrição. Isso só mostra como é, de facto, boa pessoa.
    Ora, só zangando-se comigo sem cerimónias, sempre que lhe apetecer, é que me sentirei à vontade para comentar aqui. É claro que o dispenso-o dos atos de contrição. Isso não é necessário entre amigos e eu elegi-o como meu amigo.
    Abraço,
    Isabel S.

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  9. Ah, confessar que é um privilegio contar com os seus comentários, foi entendido como um acto de contrição? !?!?!
    Como me arrependo de o ter confessado....
    Mas como diria Voltaire, as contradições da espécie humana merecem ser examinadas.

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  10. “Como me arrependo de o ter confessado…” Se tivesse usado o ponto final, ou um ponto de exclamação, eu ficaria reduzida somente ao que estava escrito, mas optou por uma frase enfática e as reticências dão-me a hipótese, muito mais interessante, de imaginar o que pode ter ficado por dizer: a crítica, que pensa merecer, a minha (suposta) ingratidão.
    Pensa que não tive em conta a generosidade das suas palavras? As suas palavras dão-me uma importância que não tenho. Não me reconhecer no que me dizem, deixa-me sempre “sem jeito”, por achar que não correspondo às expectativas em mim depositadas, mas sensibilizou-me o facto de as ter escrito. É grande a generosidade do seu gesto. O elefante reparou na formiga? Bem-haja!
    Há dias, alguém me dizia num SMS, que “a generosidade é uma característica pessoal e não induzida”. Acredito. Quem mo disse, quando abre a boca sabe do que fala. Não desdenhe pois, dessa sua característica. As palavras mansas são sempre bem-vindas, mesmo exageradas, nunca são de mais, mimam-nos a alma e, de uma forma ou de outra, têm sempre retorno.
    Voltaire também disse “Uma discussão prolongada significa que ambas as partes estão erradas”. Valerá a pena continuarmos a “caturrar” por conta do novo acordo ortográfico quando ambos discordamos dele?

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