Evidentemente que eu estou no decorrer de uma viagem de comboio. A palavra forte não é viagem de comboio, mas no decorrer de. O sol ilumina metade do livro, cortando a página em luz e sombra. Com a trepidação, a minha mão transportada no comboio treme, e a pequena garrafa com água para beber, tomba.
Do ponto de vista dos meus olhos, esta é uma história não humana, entre coisas, uma menos-valia que decidi contar, porque pô-la a nu equivale a libertá-la da sua morte inglória e banal.
Não verteu a água, mas mudou a posição dentro da garrafa. Oscilou, estendeu-se à superfície tendo por horizonte apenas os meus olhos. Esse fenómeno simples foi visto por um outro que o escreveu.
O universo multiplica-se com a descrição minuciosa e atenta da viagem.
Maria Gabriela Llansol, O Jogo da Liberdade da Alma. Lisboa, Relógio de Água, 2003, p. 13.
Duas vezes surpreendente: encontrar Maria Gabriela Llansol e encontrá-la aqui.
ResponderEliminarNo decorrer de.
Como descreve Maria Gabriela Llansol o acto de escrever?
ResponderEliminar"Como escrever é agradável. Pelo gesto, pela concentração, pela força empregue nos dedos e no pulso. Pela manga preta que termina na palidez da pele. Pelo ângulo do dedo indicador. Pelo roçar da parte inferior da mão no lugar ainda intacto da escrita. Pelo meu rosto aí nunca envelhecido."
- Finita, Lisboa, 1987, Edições Rolim (p. 66)
Como um acto físico, do corpo: um corpo que escreve.
"O universo multiplica-se com a descrição minuciosa e atenta da viagem."
ResponderEliminarSó agora senti quanto esta frase é singular e extraordinária. Para além da extraordinária lucidez e singularidade (do teor) do todo deste texto, quanto ainda em cada uma das partes que o compõem.
É assim Maria Gabriela Llansol. Uma descoberta constante, a pouco e pouco, sempre renovada.
Surpreendente. Nem tanto. De qualquer forma, obrigado pelos comentários. É um privilegio contar com eles neste blogue. Sempre atentos e pertinentes.
ResponderEliminarJá me faz parte da vida. E com muito gosto meu.
ResponderEliminarAgradeço.