Eu também sou ribeirinho. A luz primeira que vi foi na reverberação das águas. Criei-me com as brisas frescas que sopram do meu rio, mas nasci à beira de um grande estuário, que mais parece um braço de mar, em que às vezes, nos dias de temporal, as ondas se encapelam, e as águas são sempre salgadas. A minha cidade remira-se no largo espelho do Tejo, a vaidosa, como debruçada sobre a superfície de um vasto lago. É por isso surpreendente de graça, mas as coisas perdem-se ma imensidão, distanciam-se, soçobram - deixam de ter as proporções familiares que tocam mais o coração do homem. Digam o que disserem, um rio torna-se íntimo, chegado a nós, quando se ouve correr e quando se pode falar de uma para a outra margem, gritar ao vizinho da casa e frente: - deixa que eu vou aí no meu batel..
O Douro, na força da sua impressionante grandeza, tem ao mesmo tempo o que quer que seja de caseiro - rio gigantesco que não deixa por isso de se mostrar familiar, chegando ao intimo viver dos homens. Percorre-se no seu curso, em que de quando em quando se põe irado ou apenas resmungão, mas a cada passo os olhos se nos prendem em qualquer sinal de vida próxima, que se vê e ouve latejar - povoado ou quinta isolada, as curvas admiráveis que faz a estrada, o penacho de fumo o silvo do comboio, a sombra apetitosa de uma mata, o muro grosso de um naseiro donde os pescadores deitam a rede, perto da margem um desses humildes casais de viver, pequena barquinha de toldo em que habita gente, ou então o belo barco que passa de vela aberta, a subir o rio, levado pelo vento da barra... De cá para lá todos se saúdam, todos se conhecem naquela estrada de água. E no decurso da viagem vamos tendo notícia da mutação das coisas - do que a terra vale, do que os homens vivem, de como aqui a natureza e o trabalho se mostram amáveis, e ali se tornam no tormento, na aflição de cada hora e cada instante.
Manuel Mendes, Roteiro Sentimental. Douro. Museu do Douro, 2002 [1a edição 1964] p. 41.
Sem comentários:
Enviar um comentário