Aqueles que nunca saíram das ruas direitas e monótonas das
cidades da Europa, não podem conceber a colorida e luminosa originalidade das
cidades do Oriente.
Aí, as ruas são direitas, ladeadas de largas fachadas,
caiadas, inexpressivas como rostos idiotas. As figuras são triviais, as
fisionomias vulgares, esbatidas, uniformizadas pelo tédio e as dificuldades da
vida; os estuários são escuros, estreitos, económicos. O gás, à noite, perfila
a sua linha bocejante; o rodar das carruagens e das carroças abala o chão com
uma brutalidade ruidosa. Tudo é correcto, alinhado, perfilado, medido e
policiado.
É decerto excelente para a segurança, para a justiça, para a
propriedade, para a ordem: é mesmo indispensável. A algibeira aplaude; a
epiderme, protegida, dilata-se de alegria; o espírito do lucro, garantido e
patrulhado, desenvolve-se com segurança, e as gavetas podem bocejar sem risco.
Tudo está contente no animal policiado – excepto a imaginação.
A imaginação que se não modifica, que se não civiliza,
perpétua revoltada e perpétua nómada, a imaginação que depois de vencidas as
paixões pelo código penal, depois de dominadas as violências da vontade pela polícia e pela grilheta, é ainda, só ela, bárbara, valente, espontânea, natural
e livre – a imaginação, essa, sente-se apertada, dominada, constrangida, sem
ter, na monotonia, na prisão da vida policiada, um espaço desafogado em que
respire.
A imaginação da cidade é a perpétua repelida. A imaginação
só vive da vida dos outros seres: precisa de pousar sobre as coisas externas e
tirar-lhes, como a abelha tira o mel às flores, a quantidade de sonho que as
coisas têm.
A imaginação, no campo, na margem de um rio, entre uma
floresta, toma um livre caminho, encontra alimento, vive, tem quem a escute,
tem companhia, pasta livremente, devagar, olhando, cismando...
Apertada nas ruas de uma cidade de casas estreitas e chatas,
na violenta limitação imposta pela municipalidade, que há-de fazer a imaginação, de que há-de viver, como pode
ter expansões legítimas?
Esvoaça como um pássaro dentro de uma casa fechada, batendo
as asas de encontro às paredes caiadas. E assim, a imaginação, batendo de
encontro a tudo o que faz a vida social, perturba a quietação das coisas
sérias, arremessa-se então para a política, e produz os revolucionários, as
mudanças de estado, a guilhotina; lança-se na vida moral e produz a orgia, as
lorettes, o luxo, as roletas; e quando se concentra sobre si mesma, quando se
escava a si própria, acontece-lhe o que acontece a todas as funções que se
isolam, que se impropriam: vê falso, sente falso, produz falso!
Porém, para a
imaginação do europeu, há ainda uma região livre, abundante e cheia, nas ruas
de uma cidade do Oriente: o Cairo.
Constantinopla é quase europeia e imita Viena de Áustria.
Damasco é exclusivamente síria. Alepo lembra a Suíça. O Cairo, esse, é
original, é sarraceno.
O Egipto é um país de passagem. Tudo ali passa, tudo ali
descansa, tudo ali repousa. É o caminho da Índia. É o caminho da Pérsia. É centro onde acodem todos os povos da África
Oriental. É o escoadouro das populações ambulantes do Mediterrâneo e do
Levante. Tudo para ali emigra, até os pássaros, porque tudo o que tem asas,
quando nos nossos climas começa o Inverno, foge para o velho Egipto!
Ora, o Cairo é o centro do Egipto e a sua maravilha. A corte
do Paxá chama o comércio e as caravanas. A mesquita de El-Azhar congrega os
estudantes. O Vale do Nilo atrai todo o mundo. E as ruínas que o cercam
convidam os pássaros para ali fazerem os seus ninhos.
Todas as raças, todos os vestuários, todos os costumes,
todos os idiomas, todas as religiões, todas as crenças, todas as superstições,
ali se encontram, naquelas ruas estreitas.
Eça de Queirós, O Egipto. Notas de Viagem. Lisboa, O Independente, 2001. p. 45-46.
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