domingo, 5 de maio de 2013

A imaginação só vive da vida dos outros seres. Eça de Queirós


Aqueles que nunca saíram das ruas direitas e monótonas das cidades da Europa, não podem conceber a colorida e luminosa originalidade das cidades do Oriente.
Aí, as ruas são direitas, ladeadas de largas fachadas, caiadas, inexpressivas como rostos idiotas. As figuras são triviais, as fisionomias vulgares, esbatidas, uniformizadas pelo tédio e as dificuldades da vida; os estuários são escuros, estreitos, económicos. O gás, à noite, perfila a sua linha bocejante; o rodar das carruagens e das carroças abala o chão com uma brutalidade ruidosa. Tudo é correcto, alinhado, perfilado, medido e policiado.
É decerto excelente para a segurança, para a justiça, para a propriedade, para a ordem: é mesmo indispensável. A algibeira aplaude; a epiderme, protegida, dilata-se de alegria; o espírito do lucro, garantido e patrulhado, desenvolve-se com segurança, e as gavetas podem bocejar sem risco. Tudo está contente no animal policiado – excepto a imaginação.
A imaginação que se não modifica, que se não civiliza, perpétua revoltada e perpétua nómada, a imaginação que depois de vencidas as paixões pelo código penal, depois de dominadas as violências da vontade pela polícia e pela grilheta, é ainda, só ela, bárbara, valente, espontânea, natural e livre – a imaginação, essa, sente-se apertada, dominada, constrangida, sem ter, na monotonia, na prisão da vida policiada, um espaço desafogado em que respire.
A imaginação da cidade é a perpétua repelida. A imaginação só vive da vida dos outros seres: precisa de pousar sobre as coisas externas e tirar-lhes, como a abelha tira o mel às flores, a quantidade de sonho que as coisas têm.
A imaginação, no campo, na margem de um rio, entre uma floresta, toma um livre caminho, encontra alimento, vive, tem quem a escute, tem companhia, pasta livremente, devagar, olhando, cismando...
Apertada nas ruas de uma cidade de casas estreitas e chatas, na violenta limitação imposta pela municipalidade,  que há-de fazer a imaginação, de que há-de viver, como pode ter expansões legítimas?
Esvoaça como um pássaro dentro de uma casa fechada, batendo as asas de encontro às paredes caiadas. E assim, a imaginação, batendo de encontro a tudo o que faz a vida social, perturba a quietação das coisas sérias, arremessa-se então para a política, e produz os revolucionários, as mudanças de estado, a guilhotina; lança-se na vida moral e produz a orgia, as lorettes, o luxo, as roletas; e quando se concentra sobre si mesma, quando se escava a si própria, acontece-lhe o que acontece a todas as funções que se isolam, que se impropriam: vê falso, sente falso, produz falso!
Porém, para  a imaginação do europeu, há ainda uma região livre, abundante e cheia, nas ruas de uma cidade do Oriente: o Cairo.
Constantinopla é quase europeia e imita Viena de Áustria. Damasco é exclusivamente síria. Alepo lembra a Suíça. O Cairo, esse, é original, é sarraceno.
O Egipto é um país de passagem. Tudo ali passa, tudo ali descansa, tudo ali repousa. É o caminho da Índia. É o caminho da Pérsia. É  centro onde acodem todos os povos da África Oriental. É o escoadouro das populações ambulantes do Mediterrâneo e do Levante. Tudo para ali emigra, até os pássaros, porque tudo o que tem asas, quando nos nossos climas começa o Inverno, foge para o velho Egipto!
Ora, o Cairo é o centro do Egipto e a sua maravilha. A corte do Paxá chama o comércio e as caravanas. A mesquita de El-Azhar congrega os estudantes. O Vale do Nilo atrai todo o mundo. E as ruínas que o cercam convidam os pássaros para ali fazerem os seus ninhos.
Todas as raças, todos os vestuários, todos os costumes, todos os idiomas, todas as religiões, todas as crenças, todas as superstições, ali se encontram, naquelas ruas estreitas.

Eça de Queirós, O Egipto. Notas de Viagem. Lisboa, O Independente, 2001. p. 45-46.

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