Como se fosse um poema de amor
(Lisboa, 1969)
Esta cidade tem hoje o seu rosto
e as gaivotas viam na orla dos teus olhos,
sob as nuvens cinzentas de tua fronte.
Ramos verdes de Abril agitam-se em teus lábios
e entre os teus dedos, brancas, surgem, surgem cúpulas e torres.
Um castelo de sombras ergue-se em teu peito
e um avião passa lento, percorrendo o teu cabelo.
História do teu corpo com ruas e com rostos,
recantos de cansaço, paredes coloridas,
luz que vem e pára, atónita, a teus pés,
como um cão adormecido cujo nome ignoramos.
Esta cidade terá o teu rosto para sempre
e em sua cálida extensão conhecida,
pele a pela, até aos ossos, pedra a pedra mos anos,
o amor terá distância e viverá sua morte.
Subitamente não há passado em tua língua
e em tua língua desmorona-se o presente
e tua língua arde e sua saliva queima
enquanto o rio enorme desagua
levando sob suas águas nossas vozes.
Esta cidade terá ontem nome para sempre,
escrevi como se fosse verdade,
como se as minhas palavras fossem de pedra ou aço,
como se nada tivesse jamais de desmenti-las.
Numa noite qualquer, numa morna manhã
de uma primavera chuvoso e de tormentas,
com cinismo e cansaço, mas também um momento
com aquela ilusão que tiveram outrora
e um calor vencido que alimenta ainda sua pele,
frente ao esquecimento dois seres abraçaram a vida.
Com tristeza mais suave, oh que melancolia,
junto ao húmido parque suas duas sombras tremeram
"esta cidade terá ontem nome para sempre"
e ouviram-se distantes anunciar seu adeus.
Juan Luis Panero
Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea. Selecção e notas de José Bento. P. 786.
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