segunda-feira, 11 de março de 2013

“Antes das cidades já havia pessoas?"


Numa das artérias centrais da cidade das Caldas da Rainha encontrei um dia um grafiiti onde se podia ler: “Antes das cidades já havia pessoas?”.
A pergunta, operando por uma espécie de redução ao absurdo, pode parecer desconcertante, porventura até insolente. Historicamente, as civilizações urbanas surgiram numa fase relativamente tardia da evolução das sociedades humanas.
A historia económica postula que o aparecimento de cidades implica não apenas a formação de um excedente demográfico, mas sobretudo a disponibilização de um excedente de produção agrícola, sem a qual não poderia ocorrer uma deslocação de força de trabalho dessa área para a do comércio, da manufactura, da defesa e da organização. A cidade é hierarquização territorial, institucionalização das relações sociais, organização das funções de cariz público, ou seja, atribuição de deveres em função de necessidades.
É na cidade, escreveu com optimismo, um muito citado historiador da origem das cidades, que se respira o ar da liberdade. A cidade é uma instituição de instituições, regulada por normas gerais e abstractas, a Lei. Mas a lei não garante por si só a justiça, a equidade, a  autonomia dos cidadãos, a democraticidade dos processos de decisão. José Luís Villacañas recorda um conto de Franz Kafka, que narra a historia de um camponês que permanece uma vida inteira junto da porta que dá acesso à Lei. O camponês sente-se atraído pela luz que dela jorra. A porta está aberta, mas defendida por um guarda que o impede de a franquear. A tudo o guarda resiste, aos pedidos e subornos. Ao fim de muitos anos, sentindo a morte aproximar-se, o camponês faz a pergunta que havia calado: “Se toda a gente procura seguir a Lei, como se explica que nestes anos só eu tenha procurado entrar?”, a que o guarda respondeu: “Ninguém podia ter obtido autorização para entrar, porque esta porta estava destinada apenas a ti. E agora vou fechá-la”.
Se à cidade está associada a diferenciação e a regulação institucional, também está associada o autoritarismo. A cidade com o sistema de governo mais aperfeiçoado da antiguidade, Atenas, foi também aquela cujas instituições deliberaram a condenação à morte de um filosofo interpelante, por vezes irreverente, Sócrates.
É desta tensão – entre a cidade como factor de inclusão e a cidade como cenário de exclusão – que falarei nesta crónica mensal. A cidade é património comum e é criação, ao mesmo tempo que é fragmentação e fronteira. Reflectindo sobre a experiencia pessoal e reflexão actual, proponho-me trazer regularmente ao Região de Leiria, propostas de leitura e interpretação do lugar do urbano e do papel das cidades no mundo contemporâneo.



[Texto publicado no jornal Região de Leiria, edição de 15 de Fevereiro de 2013]

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