A crónica de hoje bem podia intitular-se “As cidades
americanas de Fernando Távora”. Do programa evocativo do professor e arquitecto
Fernando Távora que Guimarães 2012 acolheu, constava uma exposição sobre a sua
obra e a edição facsimilada do
Diário de
“Bordo”, o relato circunstanciado e vivo, com recurso à escrita e ao
desenho, de uma visita de estudo efectuada em 1960. Iniciou-se a 13 de
Fevereiro esta grande viagem, que percorreria diversas cidades dos Estados
Unidos, a cidade do México, Tóquio, Banguecoque e Karashi, Beirute e Balbeque,
Cairo e Atenas, regressando a Lisboa a 12 de Junho.
Távora tinha então 36 anos, leccionava na Escola Superior de
Belas Artes do Porto, trabalhava para a Câmara Municipal e em projectos de
atelier. Esta viagem como escreveu José António Bandeirinha, o comissário da
exposição “Fernando Távora: a Modernidade Permanente” tornou-se “um verdadeiro
périplo de encontros culturais e de reversos reencontros com a sua própria
identidade matricial”. O Diário
testemunha o confronto em que o arquitecto se acha envolvido, colocando sob a
perspectiva crítica das suas origens portuguesas e europeias a forma de viver e
de representar do Novo Mundo.
Leia-se, por exemplo, a descrição que faz de uma visita ao
Empire State Building, que realizou a 6 de Março, advertindo que o faz “para
ver a paisagem”
"A paisagem urbana é surpreendente. Os edifícios de 20
andares - o Chrysler Building, o Secretariado das Nações Unidas, o Rockfeller
Center, o Wall Street - tudo fica
a nossos pés como um gato aninhado à lareira. Ao longe os aeródromos, a estátua
da Liberdade, os rios, as pontes, as high e expressways, o Central Park e os
suburbs. É difícil imaginar uma tão intensa humanização da paisagem e com que
domínio sobre a natureza e com que esforço e dispêndio. Não me perguntem se
acho bonito ou feio, estive duas horas lá em cima a pensar nisso e não cheguei
a qualquer conclusão. Há apenas uma verdade evidente: é
"quantitativamente" a maior empresa de todos os tempos. (Em determinada
altura pensei que talvez fosse mais bonita a vista de Santa Luzia sobre Viana,
a foz do rio e o mar. É seguramente mais tranquila, mas a vista de Nova Iorque
a partir do Empire State Building é extraordinariamente "exciting". A
comparação é estúpida mas eu estou tão enraizado nas minhas coisas que me
atrevi a fazê-lo. Oh, as saudades da família e aqueles domingos em Santa Luzia!
O que nós poderíamos fazer em Portugal!)
Este contraponto sentimental entre Santa Luzia e o Empire
State é, no mínimo, surpreendente. Num dos arquitectos mais informados e cultos
da segunda metade do século XX, a confissão quase irónica exprime o abismo das
escalas e de tempo que separa a cidade europeia, e de forma vincada a
portuguesa, da cidade americana.
De todas as cidades americanas onde se deteve, tanto da
costa oeste como da costa leste, Nova Iorque foi apesar de tudo aquela com que
criou mais empatia. Vindo de Filadélfia, entrou em Nova Iorque a 28 de
Fevereiro. O que mais o impressiona de imediato é o movimento. Era um domingo
ao principio da noite. "Não havia praticamente uma luz estável; tudo mexia
como pirilampos em noite quente de verão (é uma noção impressionantemente nova,
esta do movimento, de uma sociedade em permanente movimento - o movimento em
todas as escalas de espaço e tempo)."
Não esconde a sua decepção com Washington, por onde iniciou
o seu périplo americano: "Washington é uma bela cidade a duas dimensões,
isto é na planta. A sua terceira dimensão, porém, é o caos. Dir-se-ia que tudo
foi bombardeado e que a cidade foi reconstruída em estado de emergência,
tendo-se conservado alguns prédios antigos. Vale a pena visitar esta cidade
para compreender como Paris é, na realidade, uma obra de arte."
Uma semana mais tarde, a 21 de Fevereiro, a sua apreciação
sobre a capital dos Estados Unidos parece ser menos áspera. "Devo dizer
que Washington tem possibilidades de ser uma magnifica cidade porque o seu
arranjo central tem muito da garra europeia (ítalo-francesa) de compor cidades.
O problema foi o de construir uma cidade capital de uma federação campeã da
democracia, segundo um esquema "l'état c'est moi". O que em
Washington é realizado pelo Governo será discutível mas tem certa qualidade. O
que é realizado pelo "americano" não corresponde ou não contribui
para a valorização da cidade. O sentido "cívico" de cidade não o
encontrei em Washington (embora me dissessem que os habitantes são muito
"proud" da sua cidade."
Disse um dia Álvaro Siza que as cidades precisam de tempo,
conceito em que certamente soma a sua própria experiencia ao seu longo e
próximo contacto com Fernando Távora. É sem dúvida a falta de tempo, de
experiencia acumulada, de construção, desconstrução e reconstrução, de
múltiplas e sucessivas intervenções que corrigem e põem em dialogo o presente
com o passado que o repele na
cidade americana. Como bem se depreende dos comentários que deixa a propósito
de uma visita ao Metropolitan Museum: “"Estes museus americanos irritam-me
um pouco por saber que esta gente tem aqui estas coisas magníficas apenas
porque teve dinheiro para as comprar".[...] A beleza aqui está toda
guardada e foi toda comprada aos outros. Os Estados Unidos tiveram a pouca sorte
de surgirem no mundo numa altura desgraçada e são talvez os melhores
representantes da nossa decadência, até porque não têm determinados pruridos e
complexos que os outros povos possuem devido ao seu passado. Realizou-se aqui,
talvez, o sonho grande da humanidade contemporânea: viver materialmente bem e
(julga-se) todo o resto virá por acréscimo.
Não sei se me explico, nem sei se penso bem. Eu sou um
triste rural europeu com ideias ultrapassadas."
Uma versão mais curta deste texto foi publicado no semanário Região de Leiria, a 7 de Março de 2013.