quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

No caminho para a cidade celeste (2). Maria Clara de Almeida Lucas

Vencidas, por virtude das palavras mágicas que os monges lhe haviam ensinado, as provas que os diabos lhe reservavam, impõe-se a Nicolau o regresso no qual o espera nova e última provação: "hūa ponte muy estreita e aguda como cutelo; e por sob ella corria hūu grande rio". O simbolismo da ponte, que permite passar duma para a outra margem do rio, tem a ver directamente com o acesso da terra ao céu, isto é, da contingência para a imortalidade. A ponte revela-se uma passagem difícil: ela é tão estreita que nenhum homem mortal pode, por seus próprios meios, franqueável-la. Recorre então, como neste caso, à ajuda divina: "Jesus Cristo tem mercê de mim". Casos há em que a ponte se alarga ou estreita de acordo com as qualidades ou defeitos de quem a atravessar: larga para os justos, fina lâmina para os ímpios.
Na sua ligação com o céu, a ponte identifica-se com o arco-íris que Zeus lançou para ligar os dois mundos.

Maria Clara Almeida Lucas, "A Cidade Celeste na Hagiografia Medieval Portuguesa", in O Imaginário da Cidade. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian/ACARTE, 1989, p. 81.

2 comentários:

  1. São particularmente expressivas e eficazes as metáforas espaciais: labirintos, escadas, pontes... E, como diria Nietzsche, a verdade mais não é do que um cortejo de metáforas e de metonímias.

    Die Brucke (a ponte) foi nome de um movimento artístico de expressionistas alemães dos inícios do século XX.

    O "grito" de Munch não seria tão gritantemente audível, em seu eloquente silêncio, se quem o emite não tivesse sido representado sobre uma ponte, terra de ninguém, lugar de suspensão (ou suspensão do lugar?) por excelência.

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  2. PONTE? RISCA-SE. E ARRISCA-SE...

    O Principe nunca foy contente das cousas do Cardeal de Portugal dom Jorge da Costa, nem lhe parecia bem a muyta honra, que el Rey seu pay lhe fazia, mais do que era rezão, com que o Cardeal se mostraua rijo, e fazia alguas cousas mais solto, do que deuia, de que o Principe tinha desprazer por el Rey lhas consentir. E estando el Rey em Almeyrim andando passeando no campo, ho Principe se apartou com o Cardeal a cauallo, e forão passeando caminho de Santarem, e à ponte Dalpiarça o Principe mandou ficar todos, e só com o Cardeal, e hos moços destribeyra adiante afastados, passou a ponte Dalpiarça. E foy reprehendendo muyto o Cardeal com palauras asperas, e feas, estranhando-lhe as cousas que fazia, e o Cardeal dandolhe muytas desculpas, o Principe lhas não recebia, e lhe disse: Pera que he nada, senão a hum Cardeal tão mal ensinado, desagradecido, e de má condiçam, mandalo tomar por quatro moços desporas, e afogalo em hum rio, e dizer que cahio, e se afogou por desastre. E isto indosse cheguando ao Tejo, de que ho Cardeal ouue tamanho medo, que verdadeyramente cuydou que o Principe o leuaua para o mandar matar.
    E dahy por diante se emmendou, e o temeo tanto, que logo determinou sua yda pera Roma, e se foy, e lá contou a muytas pessoas, que nunca tam grão medo ouuera, e que aquella ora se dera por morto.

    Garcia de Resende, CRÓNICA DE D. JOÃO II E MISCELÂNEA, reimpressão fac-similada da nova edição conforme a de 1798, Lisboa, INCM., 1973, p. 23.

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