terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

No caminho para a cidade celeste (1). Maria Clara de Almeida Lucas

A visão da cidade celeste [na hagiografia medieval portuguesa] é geralmente antecedida pela descrição do caminho seguido para a atingir e pela celeste [na hagiografia medieval portuguesa das provas vencidas.
Quando ao primeiro ponto, as hagiografias estudadas denunciam a existência de dois caminhos opostos: o santo ora empreende a subida de uma montanha ou serra! como no exemplo de Santo Amaro, ora, tomando o sentido inverso, mergulha nas profundezas da terra e é o caso da descida do poço, na vida de S. Patrício.
Este segundo caso é menos vulgar. Quando se trata de uma catábase o caminho seguido é geralmente por dentro de uma montanha: tal acontece na Epopeia de Gilgamesh. Esta escolha do poço altera o simbolismo da descida pelo acréscimo de semana diferentes. Como cavidade mergulhada no seio da terra, ao mesmo tempo que participa, pela entrada, da superfície e ainda pelo facto de conter  geralmente água ou, quando seco, ar, o poço realiza a síntese dos três elementos: a água, a terra e o ar e simultaneamente das três ordens cósmicas: o céu, a terra e o inferno. É pois um ele entre os vivos e os mortos a cuja morada ele conduz, caminho para o paraíso por via do purgatório, com uma passagem pelo inferno, visão por demais aterradora para não persuadir o viandante a preferir a estrada espinhosa do bem.

Maria Clara Almeida Lucas, "A Cidade Celeste na Hagiografia Medieval Portuguesa", in O Imaginário da Cidade. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian/ACARTE, 1989, p. 79-80.

2 comentários:

  1. Na Divina Comédia, logo no primeiro canto, Dante fala em "direita via perdida" e "do grande sono" em que se achava quando a "via veraz" abandonou. No terceiro canto, ao iniciar a descida ao inferno que empreendeu em demanda de Beatriz, referindo-se à inscrição sobre a porta que lhe dá acesso e ao destino sobre o qual ela se abre, Dante fala em "cidade dolente".

    É a muito conhecida passagem em que é dito:

    "Por mim vai-se à cidade que é dolente,
    por mim se vai até à eterna dor,
    por mim se vai entre a perdida gente.
    Moveu justiça o meu supremo autor:
    divina potestade fez-me e tais
    a suma sapiência, o primo amor.
    Antes de mim não houve coisas mais
    do que as eternas e eu eterna duro.
    Deixai toda a esperança, vós que entrais."

    Vasco Graça Moura, A Divina Comédia de Dante Alghieri (1995). Venda Nova: Bertrand Editora (p. 47)

    Mas tudo termina bem, depois do Inferno e do Purgatório, no Paraíso.

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  2. ASCENDENDO

    Poucos dias antes da partida de Antioquia fui, como outrora, sacrificar no alto do monte Cássio. A ascensão fez-se de noite: como para o Etna, levei comigo um pequeno número de amigos de passo firme. O meu fim não era somente cumprir um rito propiciatório naquele santuário mais sagrado que um outro: queria rever lá de cima aquele fenómeno da aurora, prodígio diário que nunca contemplei sem um grito de alegria.

    Marguerite Yourcenar, MEMÓRIAS DE ADRIANO, Trad. de Maria Lamas, Lisboa, Ulisseia, 1983,p. 154.

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