quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Vagabundo. Adolfo Casais Monteiro

Vagabundo

Caminho jamais achado!
Desde que dia aziago
me oprime este desejo?

Adolfo Casais Monteiro, "Confusão" (1929). Poesias Completas. Lisboa, Portugália Editora, 1969, p. 7.

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Barcos pobres dum sonho pequeno. Adolfo Casais Monteiro

Viagem

Da sombra dum céu nocturno
caía em chuva cinzenta
um hálito de outro mundo.
Vagos vislumbres de luz
quebravam raros a treva
e um medo indefinido
inclinava os arvoredos
- um vento frio corria.

Longos navios partiam
direitos ao mar do sonho
onde a tristeza se afoga
entre rochedos sem nome.
Tomam o rumo incerto
desse mar da pobre esperança
os navios desiguais
do sonho de cada um...
Para um ponto indefinido
nos horizontes do vago
partem naus cheias de luz,
de fé, de muita esperança;
partem os grandes navios
daqueles que muito sonham
ao lado daqueles barcos
pobres dum sonho pequeno
que parecem de papel
das almas que nada pedem.

Nas noites de cada dia
as velas cheias de vento
embaladas nas cantiga
de muita e doida esperança
vão partindo as caravelas
do sonho que vive um dia...

Adolfo Casais Monteiro, "Confusão" (1929). Poesias Completas. Lisboa, Portugália Editora, 1969, p.  15-16.


terça-feira, 29 de outubro de 2013

"Não lhe apetecia sair do seu canto senão para uma grande cidade". Vitorino Nemésio

Carta a José Régio

Muitas vezes, nesta Montpellier de Rabelais, de Valéry, de Stendhal e de Gide, me tenho lembrado de um dito de V.: que lhe não apetecia sair do seu canto senão pª uma grande cidade. Eu temia também um meio ronceiro como os nossos (Coimbra, «sua mulher», posta de parte), e não digo que isto seja uma Atenas, nem creio que Atenas nos convenha. Mas há nesta borda de França, que foi aragonesa e ainda é mediterrânica, não sei que mistura de campo e de metrópole que nos toca as cordas por mais tempo guardadas no estôjo...; estou em dizer que cordas novinhas em fôlha. A Alexandria dos compêndios de história universal talvez fôsse um pouco como isto. [...] Na pensão do «Bernardo» acotovelava-me com arménios, roménos, siameses, egipcianos [...]; na Cité Universitaire tinha chins, e até neste admirável Scots College já tive uma lição de chinês e tenho romenos da Bessarábia, bilingües de russo; ditos da Transilvânia, húngaros de garganta; um russo branco que estuda sânscrito e sacha todo o dia; uma girafa do Canadá; suíços alemãis e franceses; um hindú, um escossês, um catalão e um espanhol de Alicante.

[Carta], 1934 Maio 21, Montpellier - Collège des Écossais, [a] José Régio, [s.l.] / Vitorino Nemésio. – [4] p. em [2] f. ; 30 cm
Autógrafo assinado (fotocópia), original em Vila do Conde no Centro de Estudos Regianos.
Esp. JR (C. M.Vila do Conde)

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Tão preguiçoso ando que nem leio os jornais. Eça de Queirós.

Hotel Continental
Biarritz, 20 de Fevereiro, 1900

Minha querida Emília

Continua o tempestuosíssimo tempo. Hoje de manhã, antes do almoço, ainda houve um repouso, e eu pude dar um longo passeio pela beira deste formoso mar. Mas logo depois do meio-dia recomeçou a desesperada borrasca. Felizmente a temperatura está doce, quase de Primavera. No meu quarto, sem lume, há sempre 18 a 19 graus. Eu, graças a Deus, ontem e hoje tenho estado melhor, sem acréscimos. Mas realmente pouco benefício posso tirar destes dias passados num fumoir a ler dormentemente medíocres romances ingleses, e a ir de vez em quando à janela, para verificar através dos vidros embaciados que a tormenta é cada vez mais áspera. 
Encontrei aqui no Hotel, o Nabuco, que veio para o Sul, para a convalescença da pequena. É excelente companhia - e com ele converso e passo estas tardes encerradas. Eu estou aqui pensando em ir uns dias para Cannes, ou outro sítio da Riviera. Mas a jornada é longa, fastidiosa, além de cara. Depois talvez esta tormenta que anda agora tão teimosamente no Oceano, se prepare também a ir para o Mediterrâneo.
Hoje não tive carta. Estou impaciente por saber se a querida Maria está melhor. Não a deixes ir à pândega do convento, sem a veres inteiramente boa. E o Zézé? Está restabelecido? Já circula? Eu tenho muitas saudades se casa - e este tempo triste e sombrio mais acentua a sensação de solidão. Seria um tempo bom para trabalhar - mas o mar, o vento, a seca, e como sempre a mudança de meio, têm-me tornado estúpido. A isso acresce a preguiça. De modo que têm sido dias muito moles e vazios e bêtes.
Tão preguiçoso ando que nem leio os jornais - e o Nabuco é quem me dá o resumo da campanha do Transvaal, d'après os seus jornais ingleses.
Escreve, - tu que tens notícias que me interessam, as de casa: porque só te sei dizer do tempo.
Mil beijos à Maria, Zézé, Tonton, Bébert. Porque não me escrevem? Sem rascunho - ou que mandem o próprio rascunho. Abraços e beijos, ambos de toda a ternura do teu

José

Eça de Queiroz: Correspondência. Organização e notas de A. Campos Matos. Vol II. Lisboa, Caminho, 2008, p. 504-505.

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Pela Via Láctea

Lá no alto tu e eu iremos;
pela Via Láctea tu e eu iremos;
pela estrada florida tu e eu iremos;
colhendo flores sem pararmos tu e eu iremos.

Poema dos índios Wintos
Versão de Herberto Hélder

Rosa do Mundo. 2001 Poemas Para o Futuro. Direcção de Manuel Hermínio Monteiro.
Lisboa, Assírio & Alvim, 2001, p. 154.

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Caminhei ao longo dos gelos marinhos

Quero visitar uma mulher estrangeira,
quero desvendar os enigmas do homem.
Desato as correias das minhas botas,
procuro no homem
e procuro na mulher.
No rosto das mulheres desfaço as rugas.

Caminhei ao longo dos gelos marinhos,
e as focas sopravam de dentro dos buracos.

Escutei maravilhado o canto do mar
e o gemido claro dos jovens gelos.

E um espirito antigo traz agora o poder
à casa das danças.

Poema dos esquimós. Versão de Herberto Hélder
Rosa do Mundo. 2001 Poemas Para o Futuro. Direcção de Manuel Hermínio Monteiro.
Lisboa, Assírio & Alvim, 2001, p. 114

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

A viagem de Carlos Eduardo. Eça de Queirós


E então Carlos Eduardo partira para a sua longa viagem pela Europa. Um ano passou. Chegara esse Outono de 1875: e o avô, instalado enfim no Ramalhete, esperava por ele ansiosamente. A última carta de Carlos viera de Inglaterra, onde andava, dizia ele, a estudar a admirável organização dos hospitais de crianças. Assim era: mas passeava também por Brighton, apostava nas corridas de Goodwood, fazia um idílio errante pelos lagos da Escócia, com uma senhora holandesa, separada de seu marido, venerável magistrado da Haia, uma Madame Rughel, soberba criatura de cabelos de oiro fulvo, grande e branca como uma ninfa de Rubens.
Depois começaram a chegar, dirigidas ao Ramalhete, caixas sucessivas de livros, outras de instrumentos e aparelhos, toda uma biblioteca e todo um laboratório — que trazia o Vilaça, manhãs inteiras, aturdido pelos armazéns da Alfândega.
— O meu rapaz vem com grandes ideias de trabalho — dizia Afonso aos amigos.
Havia catorze meses que ele o não via, o «seu rapaz», a não ser numa fotografia mandada de Milão, em que todos o acharam magro e triste. E o coração batia-lhe forte, na linda manhã de Outono, quando do terraço do Ramalhete, de binóculo na mão, viu assomar vagarosamente, por trás do alto prédio fronteiro, um grande paquete da Royal Mail que lhe trazia o seu neto.
À noite os amigos da casa, o velho Sequeira, D. Diogo Coutinho, o Vilaça — não se fartavam de admirar «o bem que a viagem fizera a Carlos». Que diferença da fotografia! Que forte, que saudável!
Era decerto um formoso e magnífico moço, alto, bem feito, de ombros largos, com uma testa de mármore sob os anéis dos cabelos pretos, e os olhos dos Maias, aqueles irresistíveis olhos do pai, de um negro líquido, ternos como os dele e mais graves. Trazia a barba toda, muito fina, castanho-escura, rente na face, aguçada no queixo — o que lhe dava, com o bonito bigode arqueado aos cantos
da boca, uma fisionomia de belo cavaleiro da Renascença. E o avô, cujo olhar risonho e húmido trasbordava de emoção, todo se orgulhava de o ver, de o ouvir, numa larga veia, falando da viagem, dos belos dias de Roma, do seu mau humor na Prússia, da originalidade de Moscovo, das paisagens da Holanda...
— E agora? — perguntou-lhe o Sequeira, depois de um momento de silêncio em que Carlos estivera bebendo o seu conhaque e soda. — Agora que tencionas tu fazer?
— Agora, general? — respondeu Carlos, sorrindo e pousando o copo. — Descansar primeiro e depois passar a ser uma glória nacional!

Eça de Queirós, Os Maias. Episódios da Vida Romântica. Porto Editora. Colecção Clássicos da Literatura Portuguesa, p. 79-80

domingo, 20 de outubro de 2013

No regresso de Itália. Turner

Turner Joseph Mallord William, Messieurs les Voyageurs on their return from Italy (par la diligence) in a snow drift upon Mount Tarrar. 22 janvier 1829, 1829, aquarelle gouachée, 0,545 x 0, 747 m, British Museum, Londres, Royaume-Uni (C) Diffusion en Europe sauf Royaume-Uni et Irlande – The British Museum, Londres, Dist. RMN-Grand Palais / The Trustees of the British Museum.

sábado, 19 de outubro de 2013

Por exemplo, a Veneza. François Laplantine

A noção de viagem não constitui uma unidade. Poderíamos enumerar as múltiplas formas de viagem e de modos de viajar: viagem de negócios, viagem de amor (por exemplo, a Veneza...), viagem de lazer (o turismo), viagem de aventura (os exploradores), viagem forçada (o exílio, a deportação), viagem clandestina (a espionagem), viagem científica (a dos etnólogos e dos arqueólogos) ou pedagógica (as estadias em universidades estrangeiras), viagem religiosa (missionários e peregrinos)...

François Laplantine, "Voyage et Hospitalité", Actes de La Rencontre Villes, Voyages, Voyageurs. Paris, L'Harmattan, 2005, p. 55.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Muitas vias chegam a um único fim. John Mandeville

Em nome de Deus Todo-Poderoso. Aquele que quer atravessar o mar para ir a Jerusalém, pode ir por muitos caminhos, tanto pelo mar como pela terra, dependendo dos países de onde vier: muitas vias chegam a um único fim. Mas não pensem que vos falarei de todas as vilas e cidades e castelos, porque senão teria de escrever uma longa história a esse respeito. Só tenciono tocar brevemente nos países grandes e nos lugares importantes que um homem tem de atravessar para seguir a estrada certa.

John Mandeville, Viagens de Mandeville. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2012, p. 35.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Preferia comer sob uma cruz, disse o padre Quixote. Graham Greene

A distancia de El Toboso a Madrid não é muito grande, mas, com o andamento vacilante do "rocinante" e como a fila de camiões se estendia à sua frente, a noite veio encontrar o padre Quixote e o alcaide ainda na estrada.
- Tenho fome e sede - queixou-se o alcaide.
- E o "rocinante" está muito cansado - respondeu o padre Quixote.
- Se ao menos pudéssemos encontrar uma estalagem; mas o vinho, ao longo desta estrada principal, não é de confiança.
- Temos muito bom vinho manchego.
- Mas a comida... Tenho de comer.
- Teresa insistiu em colocar um embrulho no banco traseiro. Disse que era para uma emergência. Não confiava no "rocinante" mais do que o garagista.
- Mas  isto é uma emergência - disse o alcaide.
O padre Quixote abriu o embrulho.
- Deus seja louvado! - disse ele. - Um grande queijo manchego, alguns chouriços fumados e até dois copos e duas facas.
- Não sei dar graças a Deus, mas sei certamente dá-las à Teresa.
- Oh, bem, provavelmente é a mesma coisa, Sancho. Todas as nossas boas acções são actos de Deus, assim como as más acções são actos do Diabo.
- Nesse caso, deve perdoar ao nosso pobre Estaline - disse o alcaide -, porque talvez só o Diabo seja responsável.
Continuaram muito devagar, à procura de uma árvore que lhe desse sombra, porque o sol-poente inclinava-se baixo, sobre os campos, fazendo sombras muito estreitas, para os dois homens se poderem sentar à vontade. Finalmente, sob o muro arruinado de uma casa que pertencia a uma quinta abandonada, encontraram o que precisavam. Alguém pintara uma foice e um martelo a vermelho por cima da pedra em desagregação.
- Preferia comer sob uma cruz - disse o padre Quixote.
- Que importância tem? O sabor do queijo não será afectado pelo cruz ou pelo martelo. Além disso, haverá diferença entre os dois? Ambos são protestos contra a injustiça.
- Mas os resultados foram levemente diferentes. Um criou a tirania, outro a caridade.
- Tirania? Caridade? E a Inquisição e o grande patriota Torquemada?
- Foram menos os que sofreram com Torquemada do que com Estaline.
- Tem a certeza disso em relação à população da Rússia no tempo de Estaline e à da Espanha no tempo de Torquemada?
- Não sou um estatístico, Sancho. Abra uma garrafa, se tiver um saca-rolhas.

Graham Greene, Monsenhor Quixote. Mem Martins, Europa-América, s/d, p. 41-42

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Hadleyburg teve o azar de ofender um forasteiro. Mark Twain

Hadleyburg era, na região, a cidade mais honesta e íntegra. Mantivera essa reputação durante três gerações e tinha mais orgulho nela que em qualquer outra das suas riquezas. Tinha tanto orgulho e tanto empenho em assegurar a sua perpetuação, que começou a ensinar os princípios da conduta honesta às crianças no berço, e colocava tais ensinamentos no cento da sua cultura, durante todos os anos dedicados à educação.
[...] As cidades vizinhas tinham inveja desta supremacia honrosa e fingiam escarnecer do orgulho de Hadleyburg, chamando-lhe vaidade; mas mesmo assim eram obrigadas a reconhecer que Hadleyburg era uma cidade incorruptível.
[...] Mas, por fim, no correr do tempo, Hadleyburg teve o azar de ofender um forasteiro que por lá passou - possivelmente sem dar por isso, certamente sem se preocupar, pois Hadleyburg era auto-suficiente e náo dava um centavo por forasteiros ou pelas suas opiniões. Durante um ano, em todas as suas deambulações, nunca se esqueceu desse insulto, dedicando todos os momentos de ócio a magicar como conseguir obter uma reparação. [...] Por último, teve uma ideia feliz e, quando lhe nasceu no cérebro, iluminou-se toda a cabeça com uma alegria maligna. De imediato desenhou um plano, dizendo a si próprio "É o que há a fazer - vou corromper a cidade".

Mark Twain, O Homem que Corrompeu Hadleyburg. Lisboa, Assírio & Alvim, 2003, p. 7-8.  

domingo, 13 de outubro de 2013

Viajar com Sophia (3). Miguel Sousa Tavares


E veio. Na primeira noite, instalámo-nos no Forte Aguada, em frente de Pangim, a capital do Estado de Goa. Com o mar aos pés e uma noite tropical, com a companhia de outros portugueses, como o António Alçada Baptista, foi um jantar maravilhoso, que se arrastou até altas horas da noite. Acordei na manhã seguinte a pensar que, ou ficava ali a tomar conta dela e a ver as palmeiras que "como um trigo de Império, ondulam sem se poder ver", ou ia fazer a minha reportagem. Assim, com o coração dividido e a consciência trespassada, fui-me despedir dela, explicando-lhe que tinha de ir para Pangim, do outro lado do canal e onde estavam as minhas "fontes", os meus "contactos", o material da minha reportagem. Respondeu-me que fosse sem problemas, que ficava muito bem, ali, onde os Albuquerques e os Mascarenhas tinham construído aquele forte virado para o mar que um dia os levaria de volta a casa. Dois dias depois, não tendo conseguido falar com ela por telefone, fiquei apreensivo e resolvi ir até ao outro lado do canal, para ver se ela estava bem. De Pangim para lá e vice-versa, atravessava-se numa espécie de cacilheiro, carregado de famílias, porcos, galinhas, sacas e trouxas de toda a espécie: não mais de quarenta minutos. A meio da travessia, quando nos cruzámos com outro barco igual que vinha de lá, peguei na máquina para fotografar aquela cena cheia de cor de dezenas de indianos encavalitados em tudo o que era sítio, no outro barco. Havia uma ligeira neblina no canal, que tornava ainda mais exuberante o espectáculo de cores do barco com que nos cruzávamos. E, de repente, correndo a mão ao longo do barco, à procura da melhor fotografia, vejo-a a ela - sozinha, a meia nave, entre os outros passageiros. Estava a uns vinte metros dela e gritei "Mãe!". Ela virou-se, reconheceu-me e sorriu, radiante. Nesse exacto instante, eu disparei e guardei-a para sempre, assim - feliz, deslumbrada, perdida na Índia. Não como se viajasse: como se flutuasse.

Miguel Sousa Tavares, "Roma, Piazza Navona" in Colóquio Letras, número 176, Janeiro/Abril 2011, pp. 127-8.

sábado, 12 de outubro de 2013

Viajar com Sophia (2). Miguel Sousa Tavares


Muitos anos mais tarde ainda, já ela tinha morrido, eu estava numa sessão de autógrafos de um livro meu, no Rio de Janeiro. Da fila, emergiram uma senhora nova e bonita e uma senhora muito velha, outrora bonita - neta e avó. Esta última apresentou-se-me e o nome era-me familiar, sem conseguir situar aonde. Ela esclareceu-me: "Eu e meu falecido marido éramos grandes amigos de sua mãe. Viajámos de carro até Brasília, em 1966, tinha a cidade sido acabada de fundar; viajámos por Espanha, com o João Cabral de Melo Neto, quando ele era cônsul do Brasil em Sevilha; e viajámos com ela e o seu pai até à Grécia." Aí, eu lembrei-me enfim de quem ela era: lá, do infinito, veio-me a memória da descrição dessas viagens feitas pela minha mãe, e fiquei sem saber bem o que dizer. Mas a senhora sacou de um pequeno maço de quatro ou cinco fotografias e disse-me: "Guardei isto durante muitos anos, mas agora acho que é altura de as dar ao filho da Sofia." Eram fotografias deles todos em Espanha, no Brasil e na Grécia. E havia uma que era quase insuportável de ver: a minha mãe e o meu pai na Grécia, ela sentada no que parecem ser umas ruínas dum templo, ele abraçando-a por trás e ela olhando em frente o mar, com os olhos quase fechados e uma expressão de felicidade tão grande que até dói de pensar que o tempo não parou naquele instante, eternamente.
 Fomos até Madrid, parando em Trujillo, a terra de Pizarro, e em Toledo, para ela me mostrar o Enterro do Conde de Orgaz, do Greco. Mostrou-me o Prado, o Velázquez, o Goya, o Botticelli, o Rembrandt. Tudo feito no seu ritmo de viagem: olhar, parar, continuar a olhar e ficar. Vinte e cinco anos passados, cruzámo-nos na Índia. Não viajámos propriamente juntos: partilhámos o mesmo avião. Ela ia como convidada do Presidente Mário Soares, em visita de Estado, e eu aproveitava a boleia no avião para frazer uma reportagem em Goa. Mas quando, em Delhi, lhe disse que seguia para Goa, ela, tentada pela poeira da História, resolveu vir também, trocando o protocolo de Estado pelas memórias do Império.

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Viajar com Sophia (1). Miguel Sousa Tavares


ROMA, PIAZZA NAVONA

Já escrevi algures que aprendi a viajar com a minha mãe, graças a uma simples frase dela, dita no momento exacto e no local exacto: na Piazza Navona, em Roma, cerca das seis da tarde e depois de uma hora de chás, cigarros e contemplação silenciosa da geometria perfeita da praça. Sentindo a minha impaciência - a impaciência de quem estava em Roma pela primeira vez e tudo queria ver, sem detença -, ela disse. "Miguel, viajar é olhar."
Nunca me esqueci. Da frase. Do seu significado. Da obrigatoriedade de olhar. E da Piazza Navona, que, hoje ainda, é o meu lugar favorito de Roma. Suponho que é assim que uma mãe deve educar um filho e ensiná-lo a viajar.
Eu viajei muito pouco com ela, muito menos do que qualquer um dos outros filhos. Imagino que, pelo facto de ser jornalista e na altura viajar constantemente, ela tenha achado que eu podia voar sozinho. Mas, em cada viagem minha, exigia sempre que eu lhe contasse tudo à chegada e nunca dispensava - quando, antes de partir, me ia despedir dela - um sinal da cruz, que me fazia na testa. Depois, quando eu voltava, ia jantar à casa da Graça e ela não queria ver fotografias, queria apenas que lhe contasse o que tinha visto. Nunca soube que fotografasse em viagem, limitava-se a olhar, para depois guardar e poder contar: guardar para ela, contar para os outros. O mesmo exigia de mim e eu aprendi assim que um viajante é o que guarda nos olhos o que viu e transmite por palavras o que os outros não viram. Em 1966, segundo lembro, ela foi ao Brasil - numa viagem que então era meio-aventurosa, quase a de Gago Coutinho, com paragens aéreas onde se podia. E uma delas foi no Recife, de onde me mandou um postal que, inevitavelmente, me chegou depois dela própria. O seu deslumbramento com a viagem era tamanho que, nada mais tendo visto que o aeroporto do Recife, escreveu: "na luz da madrugada e da manhã nascente, o Recife parece-me um fruto roxo". Anos mais tarde, muitos anos mais tarde, ao desembarcar no Recife pela primeira vez, procurei em vão a luz e o cheiro do fruto roxo que ela tinha visto. Aprendi também que vemos o que vemos, o que queremos ver e o que ninguém mais enxerga. Vemos tanto mais quanto a nossa disponibilidade de ver: viajamos para dentro de nós, primeiro que tudo.

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Equipamento de viajante (4)

Notas:
1. Equipamento básico, sujeito a revisão e actualização.
2. Separadores cromáticos: equipamentos assinalados a vermelho (cadeira. mapa, sapatos femininos): tudo o resto a preto e branco (escala de cinzentos).
3. Necessidade de actualização do perfil visual do autor.

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

terça-feira, 8 de outubro de 2013

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

domingo, 6 de outubro de 2013

Mais uma vez foi preciso partir. René Char

Porquê este caminho em vez daquele? Onde conduz, para nos solicitar tão fortemente? Que árvores e que amigos estão vivos por detrás do horizonte destas pedras, no longínquo milagre do calor? Viemos até aqui, porque ali onde estávamos já não era possível. Torturavam-nos e iam escravizar-nos. O mundo, hoje em dia, é hostil aos Transparentes. Mais uma vez foi preciso partir... E este caminho, que parecia um esqueleto comprido, conduziu-nos a um país que só tinha o seu fôlego para escalar o futuro. Como mostrar, sem atraiçoá-lo, as coisas simples desenhadas entre o crepúsculo e o céu? Por virtude da vida obstinada, na fivela do Tempo artista, entre a morte e a beleza.

René Char, Este Fanático das Nuvens (Antologia Para uma Leitura). Selecção e organização de Marie-Claude Char e Y. K. Centeno. Lisboa, Cotovia, 1995

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Estava apaixonado. Patrícia Highsmith

Todas as manhãs, Don verificava a sua caixa de correio, mas nunca havia carta dela. [...]
Tinha escrito a Rosalind há treze dias, dizendo que a amava  e que desejava casar com ela. Era talvez ligeiramente precipitado devido à curta duração da corte, mas Don achava que escrevera uma carta sensata, não exercendo pressão, declarando apenas o que sentia. Afinal de contas, tinha conhecido Rosalind durante dois anos, ou melhor, tinha-a encontrado em Nova Iorque, dois anos antes. Vira-a de novo na Europa, no mês anterior, estava apaixonado e desejava desposá-la. [...]
Passaram mais dois dias e continuou a não haver resposta. [...]
Abriu [dois dias mais tarde] a caixa e puxou para fora o envelope longo e frágil, com as mãos trementes, deixando cair as chaves aos pés.
A carta consistia apenas em quinze linhas dactilografadas:
Don:
Lamento muito ter esperado tanto tempo para responder à tua carta, mas as coisas aqui têm surgido umas atrás das outras. Só hoje ficaram suficientemente arrumadas para começar a trabalhar. Antes de mais nada atrasei-me em Roma, e conseguir tratar aqui [em Paris] do apartamento tem sido um inferno por causa das greves dos electricistas e coisas do estilo.
És um amigo, Don, sei-o e não o esquecerei. Também não esquecerei os nossos dias na Côte. Mas, querido, não consigo imaginar-me a mudar a minha vida radical e abruptamente, seja para me casar aqui ou em qualquer outro lugar. Devo poder ir no Natal aos Estados Unidos, as coisas por estes lados estão demasiado activas, e porque havias tu de abandonar Nova Iorque? Talvez por altura do Natal, ou quando receberes esta carta, os teus sentimentos tenham mudado um pouco.
Mas voltarás a escrever-me? E não deixarás que isto te torne infeliz? E podemos ver-nos outra vez um dia? Talvez inesperadamente e de uma maneira tão maravilhosa como em Juan-les-Pins?
Rosalind

Patrícia Highsmith, O Observador de Caracóis e Outros Contos. Lisboa, Teorema, 1987, p. 21-31.

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Não sei, nesta viagem, se irei a Portugal. Jorge de Sena

Santa Bárbara, 22 de Dezembro de 1972

Estou a cerca de um mês de partir para a Inglaterra, no meu "tour" de conferências por várias Universidades, para maior glória de uma pátria vil, que em lugar de se honrar com isso, se rói da inveja de quem sempre viveu a sua mesquinharia. Irei também a Paris, a Rennes e a Bruxelas. E só voltarei em fins de Março. Pelo menos respirarei Europa, farto que estou desta América que perdeu o último comboio da decência e dignidade. [...] Mas não fazes ideia da ignorância do mundo em que esta população [americana] é mantida - e os milhares que o têm visto não são suficientes para mudar as coisas. Todavia: Portugal está no bolso disto, e não no dos Mercados Comuns em que aliás entrou pela porta do cavalo. Mas para que me ralo eu com esta conversa? Toda a gente tem os governos que merece, e nós é que às vezes não merecemos o ter nascido aonde nos fizeram nascer (nem, o que é a mais trágica ironia, o pobre povo que nem sabe como usam da pele dele, como já dizia o velho Sá de  Miranda).
Não sei, nesta viagem, se irei a Portugal. É possível que, por pesquisas que tenha de fazer, salte a Madrid. Mas só pensar em ir a Lisboa (apesar dos amigos que tanto gosto de ver) dá-me dor de fígado.

Sophia de Mello Breyner - Jorge de Sena: Correspondência. 3a ed. Lisboa, Guerra e Paz, 2010, p. 143-144.

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Visita a um pôr-do-sol. Setembro de 2013

Agosto e Setembro devem ter fornecido aos fotógrafos amadores em que todos nos convertemos a maior oferta de sempre de paisagens em pôr-do-sol. As redes sociais brindaram-nos com uma profusão infindável de horizontes lacustres ou terrestres iluminados por discos vermelhos e salpicados de azul, verde ou castanho.
Na semana passada, com a noção de que perdera as melhores oportunidades de competir com os meus amigos do facebook, procurei a Foz para registar imagens de um pôr-do-sol.
Aqui fica o resultado.

1º andamento




2ºandamento




3º Andamento