sábado, 8 de fevereiro de 2014

A lentidão das viagens exaspera-me. Francisco Keil do Amaral

Autobiografia [do Arq. Francisco Caetano Keil Coelho do Amaral; anterior a 1940]

Nasci em Lisboa aos 28 de Abril de 1910, justamente, e por infelicidade minha, no momento em que os meus pais se encontravam ausentes em viagem pelo estrangeiro.
Devido a esse facto, e por não ter junto de mim quem cuidasse do meu sustento e vestuário, fui forçado a iniciar a luta pela vida desde muito novo. Até aos dois meses ainda consegui aguentar-me em casa de uma velha míope que me tomava por um gato, me dava abundantes carapaus, mas o logro foi descoberto e tive de dar novo rumo à existência. Dada a minha falta de habilitações profissionais (perfeitamente natural numa criança de tão tenra idade) vi-me obrigado a escolher  uma das raras ocupações que as não exigiam - descarregador do porto.  Nessa verdadeira escola de trabalho e coragem passei a infância e são dessa época as maiores e mais doces recordações da minha vida: uns sacos enormes de açúcar com que tinha de alombar.
Aos 15 anos um generoso senhor encontrou-me a decorar com desenhos apropriados um muro pintado de fresco, e ficou impressionado com a minha vocação artística. Resolveu educar-me à sua custa e meteu-me num colégio onde me esforcei por corresponder àquela prova de interesse e magnanimidade.
Completei a instrução primária em sete anos e o meu pródigo benfeitor presenteou-me com uma viagem à Itália onde me demorei algum tempo na contemplação de tantas e tão extraordinárias obras de arte. Não vi o papa.
Após alguns estudos liceais ingressei na Escola de Belas Artes, de onde saí pouco depois para ir buscar o sobretudo de que me tinha esquecido.
A minha vocação afirmou-se amplamente e logo no primeiro concurso artístico a que concorri ganhei o prémio das famílias numerosas.
Após os estudos regulamentares diplomei-me em Arquitectura e iniciei uma vida profissional cheia de sucessos, que a minha habitual modéstia não me permite enunciar.
Moro longe da cidade e a lentidão das viagens exaspera-me. Para matar o tempo, resolvi escrever. No entanto, já escrevi mais de 300 páginas e o tempo continua vivo.
Espero que o futuro continue a sorrir-me e que estas notas biográficas sirvam de incentivo aos jovens de todo o Mundo. Como muito bem diz o Diário de Lisboa, "a virtude e a perseverança são a riqueza dos pobres e a pobreza dos avaros".

Keil do Amaral: Humor de Arquitecto. Compilação, introdução e notas de Pitum Keil do Amaral. Lisboa, Argumentum, 2010, p. 17.

2 comentários:

  1. Um tom de ironia algo desconcertante, o deste texto.
    Mas que tom adoptar quando alguém escreve sobre si mesmo? Qual o mais adequado?
    A ironia é indispensável. Mais ainda quando estão em causa coisas tão sensíveis como as circunstâncias, no mínimo difíceis, do nascimento e da infância ou os sucessos da vida adulta.
    É condição do sentido de humor que ele se exerça, antes de mais, sobre o próprio. É o caso. A propósito, destaco:
    "Para matar o tempo, resolvi escrever. No entanto, já escrevi mais de 300 páginas e o tempo continua vivo."

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  2. E, DE REPENTE, UMA FRASE

    Encostei-me na balaustrada de cimento, que imitava troncos de árvore. O sol já se pusera, e só uma mancha avermelhada marcava ainda o lugar onde ele descera. O mar estanhava-se palidamente, aqui e ali sombreado. A praia alongava-se vazia até ao cabo, e os barcos lá longe eram empurrados para a água por grupinhos de formigas. O farol dardejava compassadamente sem que o seu foco já se distinguisse. Vagos e dispersos gritos, que chamavam, vinham flutuando pelo ar que, à beira de água e do lado do rio, parecia adensar-se numa névoa transparente, que vibrava. Em baixo, as rochas eram verdes, com charcos pardos entre elas.
    Acendi um cigarro. Onde iria jantar? Não me apetecia comer. Apetecia-me fugir. Para onde e porquê? E, de repente, ouvi dentro da minha cabeça uma frase: "Sinais de fogo as almas se despedem, tranquilas e caladas, destas cinzas frias". Olhei em volta. De onde viera aquilo? Quem me dissera aquilo?Que sentido tinha aquela frase? Tentei repeti-la para mim mesmo: Sinais de fogo... Mas esquecera-me do resto...[...] Seriam versos?

    Jorge de Sena, SINAIS DE FOGO, Lisboa, Edições 70, 1981, p. 113.

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