sábado, 31 de maio de 2014

O embarque de Santa Úrsula. Claude Lorrain

Claude Lorrain, Seaport with the Embarkation of Saint Ursula
1641



sexta-feira, 30 de maio de 2014

Há um sentido latente, difundido pela paisagem ou pela cidade. Maurice Merleau-Ponty

Quando lá cheguei pela primeira vez [a Paris], as primeiras ruas com que me deparei, a saída da estação, quais primeiras palavras de um desconhecido! não eram senão manifestações de uma essência ainda pouco clara mas já incomparável. Nós não percebemos praticamente nenhum objecto, do mesmo modo que não vemos os olhos de uma cara em particular, mas o seu olhar e a sua expressão. Há um sentido latente, difundido pela paisagem ou pela cidade, que surge para nós uma como evidência específica sem que tenhamos necessidade de a definir. Só emergem como actos expressos as percepções ambíguas, isto é, aquelas a que nós próprios damos um sentido pela atitude que tomamos ou que respondem a questões postas por nós.

Maurice Merleau-Ponty, Phénoménologie de la Perception. Paris, Éditions Gallimard, 1987, p. 325.

quinta-feira, 29 de maio de 2014

Goodby. James Tissot

James Tissot, Goodbye, on the Mersey
 Ca.1881



quarta-feira, 28 de maio de 2014

The Old Roadside Inn. Edward Charles Williams and William Shayer

Edward Charles Williams (1807-1881) and William Shayer (1787-1879)
The Old Roadside Inn, S/d


terça-feira, 27 de maio de 2014

Vindos dos mais variados locais para beberem vinho do Porto. Dulce Magalhães

A cafetaria Soraya
Este estabelecimento, designado oficialmente como "café", situa-se no centro histórico de Vila Nova de Gaia, mais precisamente na zona ribeirinha.
O seu interior é de dimensões bastante reduzidas, cabendo aí apenas duas mesas de quatro lugares.
[...] À falta de clientes que se faz sentir aos dias de semana junta-se também o facto de serem quase sempre os mesmos a frequentarem este espaço, com a excepção de raras situações.
Pelo contrário, aos fins de semana e feriados o estabelecimento é bastante mais concorrido, nomeadamente ao domingo, incidindo nestes dias da semana o maior dinamismo da clientela. De registar que aos domingos, durante o período da manhã e especialmente antes do almoço, a afluência das pessoas é enorme. Trata-se, na sua maioria, de clientes semanais que provêm dos mais variados locais do norte do país, para beberem o vinho do Porto que aqui é servido - note-se que, em média, a sua maioria ingere uma garrafa de vinho do Porto que partilham uns com os outros. Esta realidade acutilante repercute-se nos lucros da casa, uma vez que é voz corrente que ao domingo de manhã de ganha para o resto da semana.
O volume de clientes é de tal ordem elevado, ao domingo de manhã - não só na Soraya mas em estabelecimentos idênticos e contíguos -, que se torna impossível contabilizá-los. Ainda assim, e tentando uma pequena aproximação, dir-se-ia que habitualmente estão presentes 40 a 50 indivíduos entre o minúsculo espaço interior, o passeio imediatamente a seguir e ainda uma certa expansão dos clientes pelo passeio oposto, posicionando-se em redor dos carros, de caixas de fruta vazias ou mesmo dos tubos de obras onde colocam os cálices de vinho do Porto - as "buchas" de pão e queijo também lá adquirido, uma carrinha que se posiciona enfrente dos estabelecimentos, os aperitivos, e não raro a própria garrafa de vinho do Porto.
[...] São visíveis relacionamentos muito animados, muito vivos e muito calorosos, entre os clientes do mesmo grupo. À mesma mesa sentam-se todos quantos lá cabem, com o seu cálice de vinho do Porto e frequentemente um pratinho de aperitivos ou queijo. Como as mesas são em número reduzido, encontram-se muitos grupinhos em pé, em volta, por exemplo, de um caixote a servir de mesa, ou de um banco emprestado por uma das lojas, onde rapidamente improvisam uma mesa. Também nestes casos a conversa é animada e solta e os relacionamentos parecem facilitados pela proximidade, senão social pelo menos física. Aliás a proximidade física facilita o outro tipo de proximidade, mas entendida como real e vivida entre iguais.

Dulce Magalhães, Vinhos: Arte e Manhas em Consumos Sociais. Apreensão de Uma Prática Sociocultural em Contexto de Mudanca. Porto, Edições Afrontamento, 2010, p. 127-132

segunda-feira, 26 de maio de 2014

Viagem à Lua (1902). Georges Méliès



Le Voyage dans la Lune, A Trip to the Moon (France, 1902), the screen's first science fiction story, was a 14 minute masterpiece (nearly one reel in length (about 825 feet)), created by imaginative French director and master magician Georges Melies (1861-1938) in his version of the Jules Verne story. The silent film's plot, a light-hearted satire criticizing the conservative scientific community of its time, was inspired by Jules Verne's From the Earth to the Moon (1865) and H. G. Wells' First Men in the Moon (1901).

domingo, 25 de maio de 2014

Vejam, de passagem, a capital, mas ide mais longe observar o país. Jean-Jacques Rousseau

Todas as capitais se assemelham, nelas todos os povos se misturam e os costumes se confundem. Não é aí que é preciso ir para estudar as nações. Paris e Londres são a meu ver a mesma cidade. Os seus habitantes tem preconceitos diferentes, mas não menos uns que outros e os preceitos práticos que adoptam são os mesmos. Sabemos que há espécies de homens que se vão tornando parecidas ao longo da vida. Sabemos que ocorre por todo o lado a indiferenciação do povo e a desigualdade das fortunas. Se me referem uma cidade formada por duzentas mil almas, sei logo como nela se vive. O que sabemos à partida sobre esses lugares torna inútil ir lá para aprender.
É nas províncias recuadas onde há menos movimento, comércio, para onde os estrangeiros viajam menos, cujos habitantes se deslocam menos, mudam menos de fortuna ou de condição, que é preciso ir para estudar o gênio e os costumes de uma nação. Vejam, de passagem, a capital, mas ide mais longe observar o país. Os franceses não estão em Paris, estão em Touraine. Os ingleses são mais ingleses em Mercie que em Londres e os espanhóis mais espanhóis na Galiza que em Madrid. É a estas grandes distâncias que um povo se mostra tal qual e, sem mistura; é lá que os bons e os maus efeitos do governo mais se fazem sentir, como no fim de um grande raio a medida dos arcos é mais exacta.

Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), "Emile". Oeuvres complètes, vol. IV. Paris, Éditions Gallimard, 1980, p. 850.

sábado, 24 de maio de 2014

Dom Quixote. Honoré Daumier

Honoré Daumier (1808-1879). Litografia da série "Dom Quichotte"


sexta-feira, 23 de maio de 2014

Talvez estivesse mesmo perdendo sua época. Clarice Lispector

Perseu abrigara-se da chuva na sala da estação, pousando a mala no banco. Cortara no dia anterior os cabelos. No rosto mais nu as orelhas pareciam separadas da cabeça: as faces um pouco ossudas davam-lhe um ar de fraqueza obstinada e, apesar disso, de tranquilidade.
Seu aspecto se transformara bastante desde a época em que andava com Lucrécia. Estava muito mais magro, menos bonito. Agora havia nele u modo de ter doçura que não estava mais na doçura: com o impermeável solto no corpo parecia um estrangeiro que entrasse numa cidade.
Chovia muito. A chuva nos trilhos ainda desertos tinha um sentido reservado de que ele parecia fazer parte.
Como havia tempo, ligou o rádio que em breve estalava captando o temporal longínquo - percebia-se porém o fio de música através das crepitações da electricidade. Perseu ouvia de pé, sem sonhos e sem que o que se chamaria de entender. A frase musical, muito nobre, era-lhe visível como o rádio. Apreendia o esforço da música com o mesmo esforço agradável, e tirava prazer dessa vaga rivalidade. Quando lhe perguntavam se gostava de música, dizia sorrindo com graça que gostar gostava, mas não compreendia, dava quase no mesmo ouvir bater na porta e ouvir música.
O rádio crepitava. Perseu escutava com força pacífica, alisando o peso de papéis da mesinha. Se vivesse em sua época seria tentado a achar que a musica o fazia sofrer. Mas este rapaz insignificante não tivera verdadeiras influências nem deixava marcas. Talvez estivesse mesmo perdendo sua época e tanta liberdade o deixasse muito aquém do que poderia se fosse constrangido. Mas ele parecia sempre arranjar-se em silêncio. Se não entendia as notas obscuras, acompanhava-as com uma pequena parte enigmática sua que se comprazia na nitidez do mistério. Quando a música cessou, desligou o rádio. As gotas tombavam da calha e a bilha que o chefe da estação deixara fora enchia-se d'água.
Perseu ficou repousando de pé. Estava cansado e tranquilo. Perto da boca duas ligeiras descidas prenunciavam as rugas de homem. Como não era particularmente de sua época, que o fazia sofrer, nem possuía uma cultura de onde escolher sentimentos - estava de pé, acariciando o peso de vidro, com as duas rugas se formando: intacto, pensativo, um pouco fatigado. Sem ser pai, já não era filho. Achava-se em ponto luminoso e neutro. E esta realidade ele não transmitiria a ninguém. A nenhuma mulher sobretudo. Como jamais daria sua harmonia lua forma de seu corpo. Poderia apaziguar uma mulher. Mas a sua paz estranha, ele não comunicaria.
O sino da estação anunciava a partida. Perseu entrou no vagão, dispôs a mala sob o banco. Quanto o trem partiu, agitou-se feliz olhando para os lados.

Clarice Lispector, A Cidade Sitiada. Rio de Janeiro, Editora Rocco, 1998, p. 167-168.

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Usar a bússola. Mestre de Beaucicaut

Navigateurs utilisant la boussole. Miniature extraite d'un manuscrit (début du XVe siècle) du Livre des merveilles du monde, de Marco Polo.
Exemplar ilustrado pelos Mestre de Boucicaut e de Bedford.

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Os brasis. Darcy Ribeiro

Quando lhe perguntam a correr de onde é, ela diz Brasil; quando lhe perguntam com tempo, ela diz Portugal. Alexandra Lucas Coelho

Minnie e Yves em São Gabriel
Conhecemo-nos na igreja e despedimo-nos no teatro. O teatro pertence à igreja e eles não pertencem a ninguém. Ela nasceu na Madeira, ele nasceu no Canadá, moraram em Brasília, agora moram em São Gabriel da Cachoeira, Alto Rio Negro, Amazónia, não muito longe da fronteira entre Brasil, Colômbia e Venezuela.
Chamam-lhe Minnie. A Madeira dela não tinha túneis, era lá na Ponta de São Lourenço, hoje reserva natural. Os pais vieram fundar Brasília, adolescência entre pensadores e artistas, de Agostinho da Silva a Darcy Ribeiro. Depois, sex, drugs and rock’n roll, dois maridos, um filho de cada. E depois Yves.
Yves foi jesuíta mas não chegou a ser padre, e hoje tanto fala de budismo zen, como dos sufis do Afeganistão, como está em São Gabriel da Cachoeira por causa do bispo. Foi professor de sociologia na Universidade de Brasília.
Assim se conheceram. Namoraram oito anos em casas separadas, a seguir casaram e “deu muito certo”.
Quando os filhos (dois dela, um dele), ficaram grandes, Minnie e Yves procuraram um lugar para trabalhar com os índios. São Gabriel era o município mais indígena do Brasil e D. Edson, padre próximo da Teologia da Libertação, acabara de ser nomeado bispo. Vieram ter com ele.
A diocese tinha uma casa livre ao lado do teatrinho que D. Edson recuperara. Minnie e Yves alugaram-na. Por Yves, diz Minnie, tinham ficado a morar numa cabana, com uma muda de roupa. Mas ao ver a casa, Minnie não hesitou.

Mosaicos no chão, portadas azuis de madeira, paredes brancas enfeitadas com a cestaria em arumã dos índios baniwa, mais as telas que Minnie pinta.
É o que vemos ao chegar, na nossa última noite em São Gabriel. Na véspera, Yves viera ao nosso encontro na igreja, quando esperávamos entrevistados que não chegaram a aparecer. E chamara Minnie, por ela ser madeirense. Minnie veio com um sorriso que nunca acabou, ficámos logo convidados para almoçar no dia seguinte. Acabámos por transformar o almoço em jantar, e às sete lá estávamos, com D. Edson e o padre António por comensais. Grão-de-bico, beringela, quinoa, vinho chileno, chocolate e pudim de pão, com várias voltas de conversa.
Minnie folheia álbuns sobre os yanomami, mostra desenhos dos baré, com quem trabalhou.
— Eu achava que lhes ia ensinar algo e eles é que sabiam tudo.
Não só pinta como sabe do que pintam os índios no corpo, grafismos sofisticados, oblíquos, por vezes curvos, como aquela asa negra nas omoplatas de uma mulher.
Yves trata da política, sabe o que se passa de Brasília a São Gabriel, trabalha com os presos, indígenas que muitas vezes não tiveram qualquer defesa.
Vamos ao teatro, pelas ervas, depois de jantar. Minnie abre as portas, acende as luzes, iluminando plateia e palco, e daí passamos aos bastidores, que já em si são uma festa. Porque há cabeças de cobra e de jacaré pintadas de verde, com línguas vermelhas de fora. Há saias de palha, cocares de penas, colares de dentes. Há perucas com cristas punks e perucas aos caracóis cor de laranja. Minnie diverte-se com a ideia de experimentarmos tudo. Uma garota de 60 e picos, que ainda não perdeu o travo madeirense. Quando lhe perguntam a correr de onde é, ela diz Brasil. Quando lhe perguntam com tempo, ela diz Portugal.
— Mas não viveria em Portugal.
A casa de Brasília lá está, fora os 2000 livros que Yves já deu. Podiam viver em qualquer lugar, numa praia menos remota, menos quente, mais confortável. Se a muitos brasileiros do Rio, de São Paulo ou de Brasília, Manaus já parece uma espécie de castigo, que dizer de São Gabriel, 1200 quilómetros rio acima?
Nem os filhos os visitam. Tem mosquitos, sabe-se lá o quê.
Mas é por tudo isso que Minnie e Yves aqui moram. Porque aqui estão os que estão longe, aqueles que para muitos brancos não existem.

Alexandra Lucas Coelho, Vai, Brasil. Lisboa. Tinta da China, 2013, p. 156-157.

terça-feira, 20 de maio de 2014

Fuga para o Egipto. Adam Elsheimer

Adam Elsheimer (1574-1620), The Flight into Egypt, ca. 1605 

Adam Elsheimer, The Flight into Egypt, ca 1609.



segunda-feira, 19 de maio de 2014

Viagem a Cantão (2). Blasco Ibañez

- O senhor não vá, tornam a dizer-me. A população de Cantão está furiosa contra os brancos e, de um momento para o outro, pode haver uma carnificina. Depois virá a intervenção armada das potências e também os castigos e as indemnizações, mas o que tiver sido morto na revolta, morto continuará.
Vou, apesar de tudo, a Cantão, e a viagem foi curta, fatigante, quase inútil. Há um caminho de ferro que parte de Hong-Kong, mas há mais de um ano que não funciona. A linha é inglesa, e, como o Presidente da República de Cantão ficou, repetidas vezes, com o material circulante, os directores julgaram conveniente suspender o serviço. Viajamos pelo rio em vapores cómodos á moda americana, com várias cobertas, que são uma espécie de hotéis flutuantes.
Passamos por entre as numerosas ilhas do estuário, seguindo uns canais dourados pelo sol nascente, com margens de verde escuro. Já dentro do rio, atravessamos um estreito que os descobridores portugueses chamaram Boca de Tigre. À ida, navegando contra a corrente, gastámos umas seis horas; o regresso, como era natural, levou menos tempo.
Apesar dos europeus se terem estabelecido há já três séculos em Cantão, ainda vivem à parte, ocupando o bairro denominado Shameen, separado do resto da povoação por um canal e que é o local onde antigamente estavam as feitorias. Hoje Shameen é uma cidade de tipo americano, com edifícios de muitos andares e vários hotéis, dos quais o Vitória é o melhor e mais concorrido. A quarta parte dos moradores deste Cantão branco são franceses e os restantes de língua inglesa.  O Christian College, estabelecimento importantíssimo mantido pelos missionários dos Estados Unidos, serve de Universidade a muitas centenas de mancebos da região, que aí recebem educação moderna. O resto de Cantão ocupa uma área enorme e está habitado por mais de dois milhões de chineses. As antigas muralhas, parecidas com as de Pequim, foram cortadas em vários pontos para se dar expansão à cidade. Além disso, parte dos habitantes, mais de cento e cinquenta mil, vivem no rio em sampanes.
A população flutuante de Cantão foi sempre objecto de curiosidade para os viajantes. Os bairros formam grupos, como os agrupamentos de edifícios nas cidades terrestres. As bordas tocam-se e os vizinhos passam indistintamente de uma coberta para outra. Canais estreitos separam estes bairros de embarcações, servindo de vielas pelas quais deslizam pequenas canoas. Há sampanes que são lojas em que se vende o indispensável para as necessidades daquela povoação anfíbia. Outros barcos velhíssimos servem de templos, e bonzos de vida vagabunda vivem misturados com os habitantes da Cantão fluvial, mendigos, contrabandistas e figurantes eternos de todas as revoltas.
Também flutuaram, durante séculos, junto das margens do rio Pérola os afamados barcos de flores. O leitor sabe, sem dúvida, para que servem essas casas aquáticas, ligadas à terra por uma ligeira ponte e com galerias cobertas de plantas trepadeiras e de vasos com flores. A tripulação, chamemos-lhe assim, é de mulheres com o rosto pintado e túnicas de cores primaveris. Esses barcos de flores, iluminados toda a noite, enchem as águas escuras de reflexos dourados e músicas alegres. Dos seus pátios sobem foguetes que cortam a escuridão celeste com golpes de luz sibilante e multicolor.
São restaurantes e palácios de amor fácil para as pessoas libertinas da região. O europeu que consiga entrar num barco de flores sai quase sempre espancado pelos fregueses. Mais de uma vez o visitante branco tem desaparecido no leito lodoso do rio.
Ainda há muitos barcos de flores, mas não chegamos e vê-los sequer por fora. Os viajantes que acabámos de chegar a Cantão só conhecemos as ruas semi-europeias do bairro de Shameen, entre o cais de desembarque e o hotel Vitória, mas atravessámos de ricsha.
Os chineses de Cantão parecem-nos menos educados, mais desordeiros e insolentes, que os de outras cidades. Ao verem-nos passar de gritam em tom agressivo; dirigem-se aos companheiros que puxam pelas nossas ricshas, e, embora não possa compreender o que dizem, quer-me parecer que adivinho as suas palavras pelos gestos com que as acompanham. Insultam com certeza os patrícios que servem de cavalos aos brancos. Nota-se na multidão uma excitação extraordinária, sem dúvida por causa dos cruzadores ancorados no rio. Há numerosos navios de guerra ingleses, franceses e norte-americanos, além de um cruzador italiano e outro português, todos com os canhões prontos a entrar em acção.
Depois do almoço no Hotel Vitória, quando os mais curiosos nos dispúnhamos a sair para as ruas dos bairros chineses, para visitarmos os seus afamados armazéns de porcelana, chegam-nos alguns emissários dos cônsules e participam-nos que seria razoável e prudente regressarmos imediatamente a Hong-Kong.  [...]
Partimos às primeiras horas da tarde, vendo novamente os bairros flutuantes da Cantão fluvial e, já na noite plena, chegámos aos nossos camarotes do Franconia.
No dia seguinte falo com os meus amigos de Hong-Kong em ir a Macau, e isto lhes causa mais espanto que a viagem a Cantão. Dizem todos o mesmo:
- Não vá, senhor. Os piratas, sempre que lhe convém, atacam o vapor correio. Ainda há poucos meses, levaram prisioneiros todos os que lá iam.


Vicente Blasco Ibañez, A Volta ao Mundo. 2ª edição, Lisboa, Livraria Peninsular Editora, 1944.  2º vol., p. 174-177. A edição original, com o título La vuelta al mundo de un novelista  é de1925. Informações úteis sobre V. Blasco Ibañez podem ser encontradas no site http://www.blascoibanez.es/index.html, da Fundación Centro de Estúdios Vicente Blasco Ibañez.

domingo, 18 de maio de 2014

Viagem a Cantão (1). Blasco Ibañez

Quero visitar a cidade de Cantão, e dizem-me todos a mesma coisa:
- O senhor não vá. Parece que andam todos os dias aos tiros os partidários do doutor e os seus contrários. Além disso, se se juntarem, uns e outros, será para matarem os europeus por causa das alfândegas.
Sei que há algum exagero nestas informações, mas que de qualquer modo é fora de dúvida que a capital da China do Sul vive, há tempos a esta parte, em estado de revolta.
Cantão foi a única metrópole do Extremo Oriente que europeus e americanos conheceram durante séculos. Pequim permaneceu fechada para o mundo branco até ao último terço do século XIX. Os filhos do Céu, desejosos de conservarem isolados o seu vasto império, concederam Cantão como único porto em podiam dar entrada os navios das nações cristãs.
Quando os portugueses do século XVI ancoraram pela primeira vez em frente dessa cidade, viram que outros navegantes não europeus os haviam precedido no descobrimento. Eram os marinheiros árabes que, desde muito antes, aí tinham depósitos de mercadorias e uma mesquita. Durante cem anos, os capitães portugueses monopolizaram o comércio com Cantão, trazendo à Europa, pelo Cabo da Boa Esperança, as sedas e porcelanas. Os espanhóis adquiriram esses mesmos géneros em Manila, enviados pelos negociantes cantoneses e a Nau de Acapulco levava-os até Nova Espanha através do Pacífico.
Ia já bem adiantado o século XVII quando os ingleses começaram a visitar Cantão para carregarem nos seus navios o chá, erva cada vez mais apreciada na Europa e América, e que deu vida a uma navegação para abastecer os mercados de Liverpool, Salem, Boston e Nova Iorque. Essa afluência de barcos europeus e americanos fomentou a emigração indígena, à qual se deve o facto de todos os chineses espalhados pelo mundo serem das províncias do sul e considerarem Cantão a verdadeira capital, de preferência a Pequim.
Acumulando alguns desses emigrantes fortunas consideráveis na América, o seu desejo foi voltarem para Cantão para as desfrutarem, aumentando a riqueza da cidade. Os que não regressaram à pátria mantiveram correspondência com as famílias, e tudo isso fez que Cantão seguisse o movimento liberal da nossa época, pensando de maneira diferente do resto do Império.
Têm sido cantoneses o mais ilustrados chineses dos últimos tempos. De há maio século para cá, a mocidade intelectual de Cantão tem completado os estudos nos Estados Unidos e na Europa. Alem disso, esses chineses do sul são mais inquietos e menos pacientes que os do norte. Os seus antepassados foram muitas vezes piratas ou viveram nas montanhas como rebeldes. Nos últimos anos do Império, os cantoneses entoavam pelas ruas cantigas injuriosas para o Filho do Céu e governantes de Pequim, sem que as autoridades imperiais da cidade ousassem tomar providências contra tais irreverências.
Como era lógico, o movimento republicano que pôs termo à dinastia dos Muito Puros teve origem em Cantão. Mas estabelecida a República, os filhos desta cidade recusaram-se a continuar a ser governados de Pequim, como no tempo do Império, declarando-se independentes e constituindo a chamada República do sul.
Este separatismo não é um coisa incidental, inventada pelas divergências dos partidos políticos. Na realidade, existem duas Chinas, completamente diferentes. O habitante de Pequim, de estatura elevada, sereno de rosto, parco de palavras, meio tártaro e meio mandchu, não se parece com o chinês exuberante, imaginativo, de individualismo ingovernável, que povoa as províncias meridionais e que, ao espalhar-se como emigrante pela América, se intitula orgulhosamente cantonês.
O doutor Sun Yat Sen, fundador da República do sul e seu eterno Presidente, é um médico de Cantão, que estudou nos Estados Unidos, trabalhando com energia no tempo do Império para fazer triunfar a República. Agora porém dentro da sua própria casa luta com adversários numerosos, que lhe dificultam a politica interna e, além disso, faz frente às nações estrangeiras, mantenedoras do governo de Pequim, que se negam a reconhecer a República do sul.
No momento actual sustenta luta aberta com todas as potências. Estas cobram rendimentos das alfândegas chinesas e, depois de haverem guardado parte deles para indemnizações concedidas há anos, entregam o resto ao governo de Pequim. O doutor Presidente do sul opõe-se a que as potências intervenham nas alfândegas dependentes de Cantão, se elas não se comprometerem a entregar-lhe  excesso, dado até agora aos seus inimigos de Pequim.
Encontram-se actualmente ancorados no rio Pérola navios de guerra de todas as nações que têm interesses na China, para intimidarem Sun Yat Sen com essa demonstração naval.


Vicente Blasco Ibañez, A Volta ao Mundo. 2ª edição, Lisboa, Livraria Peninsular Editora, 1944.  2º vol., p. 171-174. A edição original, com o título La vuelta al mundo de un novelista  é de1925. Informações úteis sobre V. Blasco Ibañez podem ser encontradas no site http://www.blascoibanez.es/index.html, da Fundación Centro de Estúdios Vicente Blasco Ibañez.

sábado, 17 de maio de 2014

Onde Ícaro caiu. Brueghel o Velho

Pieter Brueghel the Elder (1526/1530–1569), Landscape with the Fall of Icarus, Ca 1558
Royal Museums of Fine Arts of Belgium  



sexta-feira, 16 de maio de 2014

Agora à Índia há-de ir! João Pedro Grabato Dias

DCXVI
Agora há-de ir à Índia! Agora tem
uma luzida Armada com que irá
partir do restelinho de Bheleém
até a Calicute, à Jáfa, à
sumptuosa Gôa, a todo o além-
-mar lusitano onde Ataíde está
na esteira dos antigos viso-reis;
que o Luso não esqueceu as suas leis!

DCXVII
Que não lhe traigam ora mais rezões
do grande luxo que é fretar a Armada!
Esta, Deos lha pediu! E as legiões
de cherubins que vê na revoltada
turbulência das núvens são rezões
de uma Rezão mais alto levantada
que o impele adiante pola renda
do Grande Mar na Lusitana Senda.

DCXVIII
Agora à Índia há-de ir! que lhe não venham
com censuras e mêdos e perdêres
de mulheres caprichadas que se arranham
só porque um raio vêem, e nos dizêres
que contam nos despois mais se reganham!
Não lhe venham com falas de mulheres
que Êle é já homem! E quem não quer segui-lo
pois que fique ao borralho bem tranquilo!

DCXIX
Outra coisa ouvirá que não conselhos
peganhados de tanto amolecer
que se pronto os desculpa é porque a velhos
as cousas diz na falta de as dizer!
Não ouvirá a railhos nem a relhos
que os orelhos não podem padecer
mais do que as santas ordens lá de cima
com que Seu Capitão o instrue e anima!

DCXX
Ele à Índia se irá! Pois esta Armada
e esta luzida tropa bem mantida
não servirão a cousa mais que nada
que esta nada fazer por toda a vida?
Não quer ouvir mais voz por protestada
a augurar-lhe cousas de partida!
Segue o seu Capitão. Deos vai a Gôa?!
Pois com ele se irá desta Lisboa.

DCXXI
Não há que dissuadi-lo. Todos calam
toda e qualquer razão por exterior
aos desejos do Rey que o não abalam
outros desejos que os de seu furor
em partir já enquanto os ventos falam
de propícia monção. Nem há valor
que, por justo, se imponha a este rey
que se julga regido de outra Ley!

DCXXII
Já a noute desceu quando se finda
a sessão de Conselho onde os conselhos
nem chegam a ouvir-se! O rey brinda
à Victória futura e pelos quelhos
que vão dar à Ribeira, a berlinda
abandona, metendo os tornozelhos
nas lamas da vazante. E olhando a luz
da lua, mui solene, traça a Cruz!

DCXXIII
Corre uma fresca aragem repentina
que eriça escamas tolas pelo rio
e musica nas cordas e chorina
dum pressago soluço de arripio.
- Dai-me um cavalo! - chegam-lhe uma crina
toda de prêto pês. - Já tanto frio!...
Chegam-lhe a capa toda em branco arminho
- Adeus! Entra-lhe a noite toda no caminho...

DCXXIV
Galopa feito vento pelo vento
que refresca mais pronto assim coagido
co'esta crina esta capa e este tormento
que o rasga fundo sem mais espora ou brido
que esse horror de ser vento mais que o vento...
Crúa espada com fio de granido...
Azourrague de bagas de pavor
sobre finas ilhargas de suor...

DCXXV
Galopa pelo escuro feito escuro
que tinge o arminho em rata de aço azul
as côxas forquilhadas num maduro
quente e frevoso escuro de paúl!
Rompe pela Alcáçova e ao muro
onde rasgada empena mostra o Sul
assoma num desvairo de ansiedade
auscultando o crescer da tempestade!

DCXXVI
Como um corpo de ovelhas voadoras
em rebanho de ladros e balidos -
- entre alcateias de uivos das sonoras
correrias dos lobos mal nutridos
que são os feros ventos - vêm nas horas
dum razar temeroso, com rangidos
onde um maior pavor se lhe acrescenta
as rogadoras nuvens da tormenta!

DCXXVII
Cordas grossas de chuva que borrasca
como açoute de pedra o lombo ao rio
forçam no paço entrada num som d'asca
nojosa e repetida. No vazio
da incredulidade em que se atasca
o Rey masca medonho desvario
de palavras soezes e profanas
que atira ao Céu como lançadas vaias!

DCXXVIII
Mas êste é um só momento! Uma rajada
em resposta à rajada! Logo volve
na pedra mais serena e tumulária
que imaginar se possa! Não devolve
já, ao vento, senão uma cansada
indiferença enojosa onde se move
como em pasta de pêz ou outro engonho
por onde deslocasse um lento sonho!...


As Quybyryacas. Poema Éthico em oitavas que corre como sendo de Luis Vaaz de Camões, em supeitíssima atribuição Frei Ioannes Garabatus.
Impressas em Moçambique, com rial privilégio de Jorge de Sena: em casa de Tempo Impressor, 1972.

João Pedro Grabato Dias, As Quibiríacas. Prefácio de Jorge de Sena. Lourenço Marques, Edição de J. P. Grabato D., Tempográfica, 1972,  Canto VI  [DCXVI-DCXXVIII].

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Ilha de Graia. David Roberts

David Roberts, "Isle of Graia Gulf of Akabah Arabia Petraea". Ilustração do livro Holy Land, Syria, Idumea, Arabia, Egypt and Nubia, 1839



quarta-feira, 14 de maio de 2014

A partir do dia em que Colombo desembarcou nas ilhas. Eduardo Lourenço

A partir do dia em que Colombo desembarcou nas ilhas que na sua imaginação tinham um outro nome, os nossos laços de europeus com as novas terras e, ainda mais, com as novas gentes, estavam condenadas a uma ambiguidade sem saída. Mesmo inextricáveis, esses laços, antes de poderem ser a expressão natural da comunicação humana, tornaram-se "nós" que o tempo, em vez de desatar, só reforçou ainda mais. As relações que se estabeleceram então, entre Índios e Europeus, mudaram em profundidade a natureza e a identidade de uns e de outros. Mas não repentinamente, nem da mesma maneira. Com o tempo, a Europa e a América tornaram-se como que uma espécie de espelho mútuo, absorvendo e recusando, simultaneamente, a imagem partida em pedaços que elas reenviam uma à outra.

Eduardo Lourenço, "A Morte de Colombo", in Do Colonialismo Como Nosso Impensado. Organização e prefácio de Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi. Lisboa, Gradiva, 2014, p. 328.

terça-feira, 13 de maio de 2014

Início da viagem de Marco Polo, em 1271

Marco Polo saindo de Veneza, em 1271.  Pormenor de iluminura de um manuscrito de ca. 1400, da Biblioteca Bodleian, Universidade de Oxford.

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Quand tu aimes il faut partir. Michel Estebe

Michel Estebe, Quand tu aimes il faut partir, 1991