domingo, 16 de fevereiro de 2014

Na desfocada penumbra...Fernando Pinto do Amaral

Levantei-me muito cedo,
eram talvez sete e meia,
e ainda quase a medo
veio-me então à ideia

que era dia de viagem.
Arranjámos-nos depois,
havia pouca bagagem,
e saímos logo os dois.

Fui levar-te ao aeroporto
e na espuma da manhã,
ao volante, ia absorto
a pensar que a vida é vã

sem o teu corpo ao meu lado,
sem a certeza de um beijo
quando acordo estremunhado
e entre os lençóis mal vejo

na desfocada penumbra 
da primeira luz do dia
esse olhar que me deslumbra
e a cada instante me guia

os gestos inconscientes,
os passos das à toa
por cidadãos tão ausentes
como agora está Lisboa.

Mas pronto, fiquei sozinho:
lá vai o teu avião
a seguir o seu caminho,
conduzido pela mão

que dá rumo à nossa vida.
Queria agarrar-lhe uma asa,
esquecer-me da despedida
e não regressar a casa.

Fernando Pinto do Amaral, Poesia Reunida, 1990-2000. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2000, p. 287-288.

1 comentário:

  1. MÃOS

    Sob a forma de mão apareceu a ternura,
    um dia, no teu queixo.

    Alexandre O'NEILL, NO REINO DA DINAMARCA, Lisboa, Guimarães Editores, 1968, p.73.

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