segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Cidade imaginária (2)

Ana e Alice

Ana marcara o jantar para a Brasserie Balzar, na Rue des Écoles. Esta preferencia tinha que ver, como me explicara noutra ocasião, com o facto de aquele ter sido um pouso habitual de Mário Soares no seu exílio em Paris.
Há mais de um ano que não nos víamos e a conversa principiou pelas actividades em que estávamos envolvidos. Depois, foi-se afastando da esfera pública e acercando-se de temas mais pesseoais. Era sempre assim. Conhecemo-nos desde a adolescência (de facto, desde os 14 anos dela, 17 meus) e, apesar dos interregnos de relacionamento, lidamos bem com a partilha da intimidade.
Nos últimos anos, multiplas perdas afectivas abateram-se sobre Ana. Entre elas, a de Alice. Ana telefonara-me, em Lisboa, no dia das cerimonias fúnebres, logo após a incineração do corpo, mas pouco faláramos então sobre a morte de Alice.
Alice era uma mulher de opiniões desassombradas embora por vezes um pouco ingénuas. Os laços de simpatia, confiança e cordialidade que entre nós se estabeleceram tiveram evidentemente a Ana como centro, mas não foram circunstanciais. Um dia, Alice propusera-me, a troco de lições de Latim, História, Filosofia e Organização Política, que ajudassem Ana a preparar os seus exames de 7º ano, um generoso pagamento. Esta espécie de perceptorado permitia-me ainda beneficiar de uma clausula não explicita: um convite para jantar em dias de lição. Foi com esta ajuda imprevista e generosa que fiz face aos encargos com o meu primeiro ano na Faculdade de Letras de Lisboa.
Ana emigrou para Paris com pouco mais de vinte anos. Enfrentou situações difíceis, que não esquece, e, se hoje conta com uma posição de relevo na produção cultural francesa, deve-a à resiliência que adquiriu e às capacidades e competências que exercitou e de que deu provas.
Contou-me os últimos anos de Alice, as sequelas do envelhecimento, relatou as visitas que mutuamente se faziam, em Paris e Lisboa. Alice gostava de Paris, que mapeara com lugares de eleição, ruas, edifícios, outras marcas afectivas.
Que fizeste da cinzas de Alice? - perguntei a Ana. - Trouxe-as comigo e durante algum tempo estiveram em  minha casa, até decidir que fazer com elas. Achei que era nesta cidade que as devia depositar. Percorri todos os locais que ela amava em Paris, um após outro, e por todos eles distribui um pouco do pó de Alice.

[Texto publicado  no semanário Região de Leiria, edição de 6 de Fevereiro de 2014]

2 comentários:

  1. Eis um texto marcado pela delicadeza. De acordo com o caso - de uma delicadeza subtil - que nele se conta.
    Que experiência singular a de entregar as cinzas de alguém aos pontos que lhe eram queridos, numa cidade!
    Como surge a intuição, e dela a certeza, de que é esse o destino que lhes cabe?

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  2. VEM, NOITE ANTIQUÍSSIMA E IDÊNTICA

    [...]
    Apanha-me do meu solo, malmequer esquecido,
    Folha a folha lê em mim não sei que sina
    E desfolha-me para teu agrado,
    Para teu agrado silencioso e fresco.
    Uma folha de mim lança para o Norte,
    Onde estão as cidades de Hoje que eu tanto amei;
    Outra folha de mim lança para o Sul,
    Onde estão os mares que os Navegadores abriram;
    Outra folha minha atira ao Ocidente,
    Onde arde ao rubro tudo o que talvez seja o Futuro,
    Que eu sem conhecer adoro;
    E a outra, as outras, o resto de mim
    Atira ao Oriente,
    Ao Oriente donde vem tudo, o dia e a fé,
    Ao Oriente pomposo, fanático e quente,
    Ao Oriente excessivo que eu nunca verei,
    Ao Oriente budista, bramânico, sintoísta,
    Ao Oriente que tudo o que nós não temos,
    Que tudo o que nós não somos,
    Ao Oriente onde - quem sabe? - Cristo talvez ainda hoje viva,
    Onde Deus talvez exista realmente e mandando tudo...
    [...]

    Álvaro de Campos, "Dois excertos de odes" IN Fernando Pessoa, OBRA POÉTICA, Rio de Janeiro, Aguilar Editora, 1969, pp. 312-313.

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