quinta-feira, 19 de junho de 2014

Viajar segundo Montaigne (1)

Esta avidez de coisas novas e desconhecidas bem ajuda a alimentar o meu desejo de viajar, mas bastantes outras circunstâncias contribuem para ele. De boa vontade me afasto do governo da minha casa.
[...] 
As viagens só me molestam pela despesa, que é grande e ultrapassa as minhas capacidades. Havendo-me acostumado a fazê-las não apenas com o séquito necessário mas com um tal que seja honroso, tenho de, por isso, as tornar mais curtas e infrequentes. E nelas não gasto senão a espuma dos meus réditos e a minha reserva, aprazando-os e diferindo-os consoante eles cheguem. Não quero que o prazer de passear estrague o do repouso; pelo contrário, pretendo que eles se fortifiquem e se favoreçam um ao outro. Nisto me ajudou a Fortuna, pois, sendo o meu principal ofício nesta vida vivê-la amenamente e de modo antes relaxado que afanoso, livrou-me ela da necessidade de multiplicar riquezas para delas prover uma multidão de herdeiros. Se a um só não bastar aquilo que para mim foi mais que abundantemente suficiente, tanto pior para ele!
[...]
Quando viajo, quem tem a custódia da minha bolsa, tem-na por inteiro e sem fiscalização: se eu fizesse contas, enganar-me-ia na mesma, e, excepto se for um diabo, obrigo-o com tão despreocupada confiança, a agir bem.
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Ausente, descarto-me de todos estes pensamentos; e menos me afectaria, então, o desmoronamento de uma torre que, quando presente, me afecta a queda de uma telha. Longe, a minha alma facilmente se torna desprendida, mas, estando em casa, sofre como a de uma vinhateiro.
[...]
Quando viajo, não tenho que pensar senão em mim e em que empregar o dinheiro, para o que basta uma regra única. Requerem-se demasiadas qualidades para aforrar: disso nada percebo. Percebo um pouco de como gastar e fazer valer os meus gastos, o que, na verdade, é o principal modo de dar uso ao dinheiro.
[...]
A outra causa que me convida a viajar é a minha incompatibilidade com os actuais costumes do nosso Estado. Consolar-me-ei facilmente de tal corrupção quanto ao interesse publico - "Séculos piores que a idade do ferro, para cuja malignidade a mesma natureza não achou nome ou metal algum" (Juvenal, Satirae, XIII, 28-30) - mas quanto ao meu, não. Acabrunha-me ela demasiado.
[...]
Tenho por hábito responder aos que me perguntam a razão das minhas viagens que sei bem aquilo de que fujo, mas não o que procuro. Se me replicam que entre os estrangeiros pode haver tão pouca saúde e que os seus costumes não são melhores, riposto em primeiro lugar que isso é difícil - "Tantas são as espécies dos nossos crimes!" (Virgílio, Geórgicas, I, 506) - em segundo lugar, que há sempre vantagem em trocar-se um estado mau por um incerto, e que os males alheios não nos hão-de pungir como os nossos.
[...]
Afora estas razões, o viajar parece-me uma actividade proveitosa. Através dela, a alma exercita-se continuamente a observar coisas desconhecidas e novas; e não sei de melhor escola, como frequentes vezes tenho dito, para formar a vida que incessantemente lhe apresentar a diversidade de tantas outras vidas, opiniões e costumes, e dar-lhe a provar uma tão perpétua variedade de formas da natureza humana. O corpo não fica assim nem ocioso nem fatigado, e tal agitação moderada dá-lhe alento.

Montaigne, "Da Vaidade", in Ensaios (Antologia). Introdução, tradução e notas de Rui Bertrand Romão. Lisboa, Relógio d'Água, 1998, p. 249-314.

11 comentários:

  1. J'ai la complexion du corps libre, et le goût commun autant qu'homme du monde. La diversité des façons d'une nation à autre ne me touche que par le plaisir de la variété. Chaque usage a sa raison. Soient des assiettes d'étain, de bois, de terre: bouilli ou rôti: beurre ou huile de noix ou d'olive: chaud ou froid, tout m'est un: et si un, que vieillissant, j'accuse cette généreuse faculté et aurais besoin que la délicatesse et le choix arrêtât l'indiscrétion de mon appétit et parfois soulageât mon estomac. Quand j'ai été ailleurs qu'en France, et que, pour me faire courtoisie, on m'a demandé si je voulais être servi à la française, je m'en suis moqué et me suis toujours jeté aux tables les plus épaisses d'étrangers. J'ai honte de voir nos hommes enivrés de cette sotte humeur de s'effaroucher des formes contraires aux leurs: il leur semble être hors de leur élément quand ils sont hors de leur village. Où qu'ils aillent, ils se tiennent à leurs façons et abominent les étrangères. Retrouvent-ils un compatriote en Hongrie, ils festoient cette aventure: les voilà à se rallier et à se recoudre ensemble, à condamner tant de mœurs barbares qu'ils voient. Pourquoi non barbares, puisqu'elles ne sont françaises? Encore sont-ce les plus habiles qui les ont reconnues, pour en médire. La plupart ne prennent l'aller que pour le venir. Ils voyagent couverts et resserrés d'une prudence taciturne et incommunicable, se défendant de la contagion d'un air inconnu.
    Ce que je dis de ceux-là me ramentoit, en chose semblable, ce que j'ai parfois aperçu en aucuns de nos jeunes courtisans. Ils ne tiennent qu'aux hommes de leur sorte, nous regardant comme gens de l'autre monde, avec dédain ou pitié. Otez-leur les entretiens des mystères de la cour, ils sont hors de leur gibier, aussi neufs pour nous et malhabiles comme nous sommes à eux. On dit bien vrai qu'un honnête homme c'est un homme mêlé.
    Au rebours, je pérégrine très saoul de nos façons, non pour chercher des Gascons en Sicile (j'en ai assez laissé au logis): je cherche des Grecs plutôt, et des Persans: j'accointe ceux-là, je les considère: c'est là où je me prête et où je m'emploie. Et qui plus est, il me semble que je n'ai rencontré guère de manières qui ne vaillent les nôtres. Je couche de peu, car à peine ai-je perdu mes girouettes de vue.

    Les Essais, livre III, chapitre IX (extrait) - Montaigne

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  2. Destaco uma frase: "sei bem aquilo de que fujo mas não o que procuro." Ainda bem. Saber de antemão o que se procura é negligenciar, ou pelo menos reduzir, as possibilidades do encontro, do inesperado, do outro ("a diversidade de tantas outras vidas"). E é isso a viagem.

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  3. Viajar es marcharse de casa,
    es dejar los amigos
    es intentar volar
    volar conociendo otras ramas
    recorriendo caminos
    es intentar cambiar.

    Viajar es vestirse de loco
    es decir “no me importa”
    es querer regresar.
    Regresar valorando lo poco
    saboreando una copa,
    es desear empezar.

    Viajar es sentirse poeta,
    es escribir una carta,
    es querer abrazar.
    Abrazar al llegar a una puerta
    añorando la calma
    es dejarse besar.

    Viajar es volverse mundano
    es conocer otra gente
    es volver a empezar.
    Empezar extendiendo la mano,
    aprendiendo del fuerte,
    es sentir soledad.

    Viajar es marcharse de casa,
    es vestirse de loco
    diciendo todo y nada con una postal,
    Es dormir en otra cama,
    sentir que el tiempo es corto,
    viajar es regresar.

    -Gabriel Garcia Márquez

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  4. A UNA LÁGRIMA

    Gota del mar donde en naufragio lento
    se hunde el navío negro de una pena;
    gota que, rebosando, nubla y llena
    los ojos olvidados del contento.

    Grito hecho perla por el desaliento
    de saber que si llega a un alma ajena,
    ésta, sin escucharlo, le condena
    por vergonzoso heraldo del tormento.

    Piedad para esa gota, que es cual llama
    de la que el corazón se desahoga
    cual desahoga espinas una rama.

    Piedad para la lágrima que azoga
    el dolor, pues si así no se derrama,
    el alma, en esa lágrima se ahoga..

    José Ángel Buesa

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  5. Parte-se o gosto meu, parte-se a vida
    De quem jamais o pensamento parte,
    Mas não creais de mim que seja parte
    De me apartar de vós esta partida.

    Parte-se o coração, mas esculpida
    Vossa figura vai na melhor parte,
    E parte-se a minha alma, mas não parte,
    Que nesses olhos fica recolhida.

    Oh quanto melhor fora se passara
    Em sospiros e lágrimas ardentes
    E na vossa presença descansara,

    Que provar o furor dos acidentes
    Que minha dura sorte me prepara,
    E já do meu receo estão presentes!

    Duarte Dias

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  6. Interessam-me agora tão-somente as impressões captadas pelos sentidos, e estas livro algum, pintura alguma oferece. O fato é que meu interesse pelo mundo se renova; testo meu poder de observação e examino até onde vão minha ciência e meus conhecimentos, se meus olhos estão limpos e vêem com clareza, quanto posso apreender em meio à velocidade, e se as rugas sulcadas e impressas em meu espírito podem ser de novo removidas. Já neste momento, em que estou por minha própria conta, em que preciso estar sempre atento e presente, dão-me esses poucos dias ao espírito uma elasticidade inteiramente nova; tenho de me preocupar com o câmbio, trocar dinheiro, pagar, fazer anotações, escrever eu próprio, em vez de, como antes, apenas pensar, querer, refletir, ordenar e ditar.

    Goethe, Viagem a Itália

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  7. O renascimento que me transforma de dentro para fora segue seu curso. Por certo, eu acreditava que fosse aprender de verdade aqui; mas não pensei que fosse ter de voltar à escola primária, que precisaria desaprender, ou verdadeiramente reaprender tanto. Disso já me encontro agora convencido, tendo-me entregado por completo a esse aprendizado, e quanto mais me vejo obrigado a negar a mim mesmo, tanto mais me alegro. Sou como um arquiteto que, desejando construir uma ponte, deu-lhe uma fundação ruim; a tempo, apercebe-se disso e demole o quanto já erguera; busca, então, ampliar e aperfeiçoar seu projeto, dar-lhe alicerces mais seguros e compraz-se já, de antemão, da indubitável solidez da futura construção.

    Goethe, Viagem a Itália

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  8. É evidente que os olhos se formam em consonância com os objetos que divisaram desde a infância, e, sendo assim, o pintor veneziano há de ver tudo com maior clareza e limpidez do que os outros homens. Nós, que vivemos numa terra ora imunda, ora poeirenta, incolor, a obscurecer qualquer reflexo, muitos até, talvez, em cômodos apertados, não podemos, por nós próprios, desenvolver uma visão assim jubilosa.
    (...)
    Não fosse pela índole alemã e pelo desejo de aprender e fazer sempre mais, em vez de gozar a vida, eu talvez devesse permanecer por mais algum tempo aqui, nesta escola do viver com leveza e alegria, tentando tirar dela maior proveito.

    Goethe, Viagem a Itália

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  9. Pensava nas semelhanças entre mim e Farida. Entendia o que me unia àquela mulher: nós dois estávamos divididos entre dois mundos. A nossa memória se povoava de fantasmas da nossa aldeia. Esses fantasmas nos falavam em nossas línguas indígenas. Mas nós já só sabíamos sonhar em português. E já não havia aldeias no desenho no nosso futuro. Culpa da Missão, culpa do pastor Alonso, de Virgínia, de Surendra. E sobretudo culpa nossa. Ambos queríamos partir. Ela queria sair para um novo mundo, eu queria desembarcar numa outra vida. Farida queria sair da África, eu queria encontrar um outro continente dentro da África. Mas uma diferença nos marcava: eu não tinha a força que ela ainda guardava. Não seria nunca capaz de me retirar, virar costas. Eu tinha a doença da baleia que morre na praia, com olhos postos no mar.

    Mia Couto, Terra Sonâmbula

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  10. CEGONHA
    Em tempos que já não são
    era Paris a toda a hora!
    Ia lá e vinha embora,
    vinha e ia numa correria
    com bebés no bico...
    Agora fico! Não é por nada...
    Mas prefiro ver passar em torre em cidade,
    poste de electricidade,
    ou painel de autoestrada!

    "Eu saíra de Londres tão precipitadamente que nem me lembrei que estávamos em guerra com a França; e já tinha chegado a Dover, e espreitado pelo meu óculo para as colinas por trás de Boulogne, quando a ideia me ocorreu; e na mesma ordem de ideias, que não havia como lá chegar sem um passaporte.
    Ora, basta-me chegar nem que seja ao fundo da rua, para sentir uma aversão mortal à ideia de regressar a saber tanto como quando parti. E como este era um dos maiores esforços que alguma vez fiz em busca de conhecimento, ainda mais me custava pensar nisso.
    De maneira que, ouvindo dizer que o Conde de **** alugara um barco de carreira, perguntei-lhe se não estaria disposto a levar-me na sua "suite". O conde tinha ouvido falar de mim, de modo que levantou poucas ou nenhumas objecções - disse apenas que a sua disposição em servir-me não poderia ir além de Calais, pois ele ia regressar a Paris passando por Bruxelas; todavia, mal eu concluísse a travessia, poderia seguir directamente para Paris; mas que em Paris teria de fazer amigos e arranjar-me sozinho.
    - Deixai-me ir até Paris, Monsieur le Conde, disse eu - que lá me arranjarei.
    E assim embarquei e nunca mais pensei no assunto. Quando La Fleur me disse que o Tenente da Polícia tinha andado a perguntar por mim, tudo aquilo me veio de imediato à cabeça . E na altura em que La Fleur acabou o seu relato, já o dono da estalagem entrara no meu quarto para me dizer a mesma coisa, acrescentando que o tenente tinha perguntado, em particular, pelo meu passaporte. O dono da estalagem concluiu dizendo Esperar que eu tivesse o meu passaporte...
    - Eu não, por minha fé!, exclamei.
    Ao dizer isto, o dono da estalagem afastou-se de mim três passos como de uma pessoa infectada - e o pobre La Fleur deu três passos na minha direcção, com aquela espécie de movimento que uma boa alma faz em socorro da alma em apuros: o indivíduo conquistou-me ao fazer isto."

    Laurence Sterne, UMA VIAGEM SENTIMENTAL POR FRANÇA E ITÁLIA PELO SR: YORICK, Lisboa, Edições Antígona. 1999, pp. 130-131.

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  11. Sempre chegamos ao sítio aonde nós esperam

    O livro dos itinerários
    (...)

    o rei fez um gesto a impor si- lêncio, e finalmente disse, Salomão, que assim conti- nuará a chamar-se enquanto aqui estiver, não imagina as perturbações que tem originado entre nós a partir do dia em que decidi dá-lo ao arquiduque, creio que, no fundo, ninguém aqui quer que ele se vá, estranho caso, não é gato que se roce nas nossas pernas, não é cão que nos olhe como se fôssemos o seu criador, e, no entanto, aqui estamos aflitos, quase em desespero, como se algo nos estivesse a ser arrancado, ninguém o teria expressado melhor que vossa alteza, disse o secretário, Regressemos à questão, em que ponto tínhamos ficado nesta história do envio de salomão a valladolid, perguntou o rei, escreve o arquiduque que seria bom que ele não tardasse demasiado a fim de se ir habituando à mudança das pessoas e do ambiente, a palavra latina utilizada não significa exactamente isso, mas é o melhor que posso encontrar agora, não será preciso dar-lhe mais voltas, nós compreendemos, disse o rei. depois de um minuto de reflexão acrescentou, o senhor estribeiro-mor tomará a responsabilidade de organizar a expedição, dois homens para ajudarem o cornaca no seu trabalho, uns quantos mais para se encarregaram do abastecimento de água e de forragens, um carro de bois para o que for necessário, transportar a dorna, por exemplo, ainda que seja certo que no nosso portugal não vão faltar rios nem ribeiros onde o salomao possa beber e chafurdar, o pior é essa maldita castela, seca e resseca como um osso exposto ao sol e, em remate, um pelotão de cavalaria, para o improvável caso de alguém pretender roubar o nosso salomaozinho, (...)

    José Saramago, A Viagem do Elefante

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