quarta-feira, 4 de junho de 2014

A viagem (I-V). Charles Beaudelaire

I
O miúdo que coleccionava mapas e cromos
Imagina que o seu gosto que cresce expande o universo;
Tão grande é o mundo à luz da vela, como provinciano
Se revela quando a memória o desdobra!


Um dia, nos vamos, o cérebro, em revoltas chamas,
O coração pleno de rancor de amargura e de desejo
E não paramos embalados pelo ritmo das vagas,
O nosso infinito ondulando com o mar finito.

Uns, felizes por escapar a uma pátria infame,
Outros, ao horror que o gregário lhe deixou,
Outros são os astrólogos afogados nos olhos de uma mulher
Uma Circe qualquer cheirando a perigo e a tirana.

Não querem voltar a bichos, razão por que a luz
O espaço e os céus inflamados os inebriam;
O frio que endurece e o sol que bronzeia
Apagam lentamente o rasto outrora dos afectos.

Para os verdadeiros viajantes, no entanto a viagem não tem porquê.
Corações leves, a balões semelhantes,
Nunca se afastam da rota que o destino traça -
"Vamos", apenas dizem. E vão.

Seus desejos são nuvens em mudança permanente,
Sonham inexperientes com volúpias dotadas de imprevisível -
Formas contínuas variáveis e desconhecidas
Cuja escrita o espírito humano nunca decifrou.

II
Não pode o berlinde abafar o pião, eis
Porque o imita - rodopio gira e dança.
Assim, o sonho e a realidade que o espicaça
Como um anjo cruel exigindo às estrelas que não brilhem.
Invulgar figura a de um cursor sem guia
Que, inexistente, é indiferente onde se fixa.
Esse cursor é o homem confiante no ponto ideal,
Na busca de repouso desliza como um louco.

 Senão, vejamos.
A alma é um três mastros rumo à Ilha dos Amores;
Da ponte o mestre grita "olho vivo, marinheiro",
Da gávea uma voz lhe responde entusiasta
"Amores à vista, mestre". Engano. É mais um escolho.
Para o homem da vigia, cada ilha no horizonte
É a tal ilha assinalada no mapa do destino;
Sua imaginação alimenta-se dessa iguaria e,
Ao raiar do dia, apenas depara com recifes pela frente.
Pobre homem da vigia, vítima alucinada!
Não seria melhor pô-lo a ferros? Deitar ao mar
Esse marinheiro fantasista, inventor de américas,
Cujas miragens tornam o abismo, se possível, mais amargo?

Quantos vagabundos, de pés na lama,
Não sonham, de nariz no ar, com paraísos brilhantes!
Nas missangas que sua lanterna esclarece
Apenas vêem diamantes com seu olhar enfeitiçado.

III
Viajantes fantásticos,
Nos vossos olhares inscritos
Trazeis narrativas nobres e mares profundos.
Abri-nos o escrínio de vossas ricas memórias,
Essas jóias maravilhosas feitas de astros e éteres.
Farei desfilar por nossos espíritos como telas
Essas jóias na sua verdadeira panorâmica.

Viajaremos imóveis. Não precisamos de velas o de vapor
Para aliviar o tédio que nos aprisiona.

Digam? Que nos trazeis?

IV
Vimos areais vagas e astros
E, apesar dos perigos e dos imprevisíveis desastres,
Muitas vezes fomos acometidos de tédio, tal como aqui.

A glória do sol sobre o mar violeta,
O esplendor das cidades ao pôr-do-sol
Incendiavam nos nossos corações um ardor inquieto
De mergulhar num céu de reflexos apelativos.
Mas atenção, as mais ricas cidades, as mais vastas paisagens
Nunca exerceram sobre nós a misteriosa atracção
Que sempre exerce a mutabilidade das nuvens.

E havia o desejo. Deixava-nos inquietos
Se bem que a experiência do saber o reforce.

Ó desejo, ó frondosa árvore, mais vivaz do que o cipreste,
Crescerás sempre? Velha árvore nutrida pelo prazer,
Enquanto tua casca endurece e cresce,
Teus ramos querem ver o sol mais próximo!

Regressamos à viagem. Tivemos o cuidado
De trazer alguns esboços para o nosso álbum voraz;
Quanto mais exótica a imagem mais prestigiosa, não é verdade?

Reparai nestes ídolos com trombas de elefantes - saudámo-los.
Vede estes troncos constelados de jóias luminosas;

Estes palácios eram tão ricos de feérica pompa
Que para os nossos banqueiros seriam um sonho ruinoso.
E estes vestidos? Não são para os olhos uma autêntica maravilha?
Olhai para os dentes e os dedos destas mulheres cobertas de tinta!
Este encantador era tão perito que as suas próprias serpentes lhe faziam carícias.

V
E que mais ainda?

Charles Baudelaire, As Flores do Mal. Tradução de Maria Gabriela Llansol. Lisboa, Relógio d'Água, 2003 [ed. original 1857], p. 289-295.




8 comentários:

  1. L'invitation au voyage

    Mon enfant, ma soeur,
    Songe à la douceur
    D'aller là-bas vivre ensemble!
    Aimer à loisir,
    Aimer et mourir
    Au pays qui te ressemble!
    Les soleils mouillés
    De ces ciels brouillés
    Pour mon esprit ont les charmes
    Si mystérieux
    De tes traîtres yeux,
    Brillant à travers leurs larmes.
    Là, tout n'est qu'ordre et beauté,
    Luxe, calme et volupté.
    Des meubles luisants,
    Polis par les ans,
    Décoreraient notre chambre;
    Les plus rares fleurs
    Mêlant leurs odeurs
    Aux vagues senteurs de l'ambre,
    Les riches plafonds,
    Les miroirs profonds,
    La splendeur orientale,
    Tout y parlerait
    À l'âme en secret
    Sa douce langue natale.
    Là, tout n'est qu'ordre et beauté,
    Luxe, calme et volupté.
    Vois sur ces canaux
    Dormir ces vaisseaux
    Dont l'humeur est vagabonde;
    C'est pour assouvir
    Ton moindre désir
    Qu'ils viennent du bout du monde.
    — Les soleils couchants
    Revêtent les champs,
    Les canaux, la ville entière,
    D'hyacinthe et d'or;
    Le monde s'endort
    Dans une chaude lumière.
    Là, tout n'est qu'ordre et beauté,
    Luxe, calme et volupté.

    Charles Baudelaire

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  2. O Porto

    Um porto é um lugar atraente para uma alma fatigada das lutas da vida. A amplitude do céu, a arquitetura móvel das nuvens, as colorações mutantes do mar, a cintilação dos faróis são um prisma maravilhosamente adequado para agradar aos olhos sem jamais os cansar. As formas projetadas dos navios, de aparelhagens complicadas, às quais as ondas imprimem oscilações harmoniosas, servem para manter na alma um gosto pelo ritmo e pela beleza. Além disso, sobretudo, há uma espécie de prazer misterioso e aristocrático para todo aquele que não tem mais curiosidade, nem ambição, em contemplar, deitado num terraço ou de cotovelos na balaustrada, todos esses movimentos dos que partem e dos que voltam, dos que ainda têm força de querer, o desejo de viajar ou de enriquecer.

    Charles Baudelaire

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  3. "E que mais ainda?"
    (...)
    Je m´étendais sur l´herbe, qui était três douce, et j´y goûtait le sommeil le plus profond qu´il me souvienne avoir connu de toute ma vie pendant neuf heures, selon mom calcul, car lorsque je m´éveillai. il faisait tout juste jour. Je tentai de me lever, mais fus incapable du moindre mouvement; m´étant en effet couché sur le dos, je découvrais que mês bras et jambés étaient fermement fixés au sol de chaque côté; et ma chevelure, qui était longue et fournie, était attachée de la même manière. Je sentais également, en travers de mon corps, des aisselles aux cuisses, plusieurs liens assez minces. Je ne pouvais regarder que vers le haut, le soleil commençait à chauffer et la lumière me blessait les yeux. J´entendais un bruit confus autor de moi, mais j´étais couché dans une position telle que je ne pouvais voir que le ciel. Bientôt je sentis, sur ma jambé gauche, quelque chose de vivant qui se déplaçait et qui, avançant avec précauton sur ma poitrine, arriva presque à mom menton. Je baissait les yeux vers cette chose autant que je le pus et découvris que c´était un être humain de moins de six pouces de haut, tenant un arc et une flèche dans ses mains, et portant un carquois au dos. Au même temps, j´en sentis une quarantaine d´autres que je pensais être de la même espèce, et qui suivaient le primier. J´étais en proie à la plus profonde surprise, et poussai un tel rugissement qu´ils s´enfuirent tous épouvantés; et un certain nombre d´entre eux, comme je devais l´apprendre plus tard, se blessèrent lors des chutes qu´ils firent en sautant à terre du haut de mês côtés. Ils revinrent cependant bientôt. et l´un d´entre eux, qui s´était aventuré assez loin pour avoir une vue entière de mon visage, levant les bras et les yeux en signe d´admiration, s´écria d´un voix aigué, mais distincte: "Hekinah degul! 1

    Swift, in Voyages de Gulliver, traduction par José Axelrad, Paris, 1960, Édition Garnier

    1- Il y en a une tête

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  4. ALCATRAZ
    Não sou esquisito:
    venha o que a vaga traz
    e o navio me deixe.
    Seja lula e marisco
    e peixe!

    "Voyager, dites-vous? que signifie le voyage?
    Quand même je serais transporté tout à coup à l'île Hong-Kong ou à Grenade, qu'y ferais-je? Un coup d'oeil me révélerait tout le pays, un coup de crayon m'en conserverait l'aspect. Puis, ce moment passé, je reprendrais mes rêves de philosophie, mes extases de poésie, mes songes métaphysiques.
    Quelle terre serait assez nouvelle à ma pensée pour l'étonner?
    Quel pays existe dont elle ne puisse faire d'avance la peinture?
    Quelle contrée attirerait mes regards au point de les détourner du ciel, et le ciel n'est-il pas partout?
    Assieds-toi donc, lève la tête au ciel, regarde et pense."

    Alfred de Vigny, "Poèmes à faire: Le voyage", IN JOURNAL D'UN POÈTE, Paris, Bib. Larousse, 1913, pp. 153.

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  5. NOUS NOUS SOMMES ENCORE...

    Nous nous sommes encore enveloppés des brumes
    Dont se voile éternellement le port désert.
    Et comme au temps de notre enfance, nous voulûmes
    Pendant toute la nuit, rester les yeux ouverts.
    Ah ! que ce soit la même angoisse qui nous prenne
    En écoutant pleurer, dans les brumes du port,
    Les appels prolongés et tristes des sirènes,
    Qui nous faisaient rêver, jadis, d’étranges morts,
    D’océans refermés sur d’immenses naufrages.

    Demain, parmi les tas de caisses, les ballots,
    Nous irons sur le port rêver de grands voyages
    Et mêler notre rêve à ceux des matelots —
    Comme aux après-midi gris et froids de dimanche
    Où nous allions en promenade, deux à deux.
    On avait déserté le port silencieux
    Et les hommes avaient cargué les voiles blanches,
    Quittant le fleuve lourd et les quais embrumés
    Pour la ville, où les magasins étaient fermés.
    Et nous seuls, sur le port, allions en longue file,
    Collégiens pensifs, aux songes imprécis,
    Et le jour se mourait sur l’ennui de la ville
    Dont l’immense lueur faisait un ciel roussi...

    En les mornes retours d’anciennes promenades,
    Un départ éternel endeuillait cette rade,
    Des musiques jouaient, aux soirs pesants de fête... —
    Je vous rends grâce, ô port tranquille, ô fleuve jaune,
    Ô ma ville immuable et douce, pour l’aumône
    De souvenirs, de visions que vous me faites,
    Pour l’écho revivant de mes pas attardés,
    Pour mes songes d’enfant que vous avez gardés.

    François Mauriac

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  6. "Homem, excita o cérebro!
    Que diz a profunda meia-noite?
    “Tenho dormido, tenho dormido!
    De um profundo sono despertei:
    O mundo é profundo, mais profundo do que o dia, pensava.
    Profunda é a sua dor e a alegria mais profunda que o sofrimento!
    A dor diz: Passa!
    Mas toda a alegria quer eternidade, quer profunda eternidade!

    "Assim falava Zaratustra", Friedrich Nitzsche

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  7. Viagem

    O beijo da quilha
    na boca da água
    me vai trocando entre céu e mar.
    o azul de outro azul,
    enquanto
    na funda transparência
    sinto a vertigem
    da minha própria origem
    e nem sequer já sei
    que olhos são os meus
    e em que água
    se naufraga minha alma

    Se chorasse, agora,
    o mar inteiro
    me entraria pelos olhos

    Mia Couto

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  8. Mar, metade da minha alma é feita de maresia

    Pois é pela mesma inquietação e nostalgia,

    Que há no vasto clamor da maré cheia,

    Que nunca nenhum bem me satisfez.

    E é porque as tuas ondas desfeitas pela areia

    Mais fortes se levantam outra vez,

    Que após cada queda caminho para a vida,

    Por uma nova ilusão entontecida.




    E se vou dizendo aos astros o meu mal

    É porque também tu revoltado e teatral

    Fazes soar a tua dor pelas alturas.

    E se antes de tudo odeio e fujo

    O que é impuro, profano e sujo,

    É só porque as tuas ondas são puras.




    Sophia de Mello Breyner Andresen

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