segunda-feira, 2 de junho de 2014

Viajar com Simone de Beuavoir (2). Éric Levéel

Mais do que uma advogada feminista [a obra mais famosa de Simone de Beauvoir, Le Deuxième Sexe, foi publicada em 1949], oferecia às suas congéneres uma porta de saída como aquela que ela própria tinha procurado em 1929, quando concluiu a sua agregação em Filosofia na Sorbonne e conheceu Jean-Paul Sartre. Uma vida se desenhava então, criada peça a peça pelas experiências, os encontros e as viagens de formação, de descoberta, e, mais tarde, políticas. Mademoiselle de Beauvoir iria certamente ver degradada a sua imagem junto do seu meio de origem, vista aí como uma hetaïre sem dote e sem relações sociais. Mas antes de mais e acima de tudo, ela transformar-se-ia numa mulher de verdade, numa pensadora de grande qualidade, fazendo da sua vida esse maravilhoso objecto que construímos do nosso modo ao longo dos anos e segundo dados objectivos deste mundo em vez dos dados enganadores ou falsos dos da sua envolvência de nascimento.
Le Deuxième Sexe esconde muitas coisa; é sempre a referencia e a obra imediatamente citada quando o nome de Simone de Beauvoir é mencionado. Mas é um erro grave limitar a experiência de uma vida a uma obra, por mais brilhante que seja. Nem é no vazio nem por acaso que alguém se torna a mãe do feminismo; é preciso observar-se, na sua própria existência criada, para a comparar à da maioria das mulheres. Mais do que dissertar longamente sobre as teses avançadas por Simone de Beauvoir a propósito da condição feminina em França e noutros países, precisamos de nos interrogar sobre como é que ela chegou àquelas conclusões tão pertinentes e e sempre tão tristemente actuais. Uma obra abriga o seu autor, é uma extensão do seu ser, um espelho da sua experiência pessoal.
Se se considerar, como Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, que a existência precede a essência e que, por consequência, ela é construída e não concebida segundo os caprichos de um Deus omnipresente, podemos então considerar que a viagem constitui um dado primordial da experiência existencial e humana de Simone de Beauvoir, no que isso implica de superação de uma situação e de projecção do outro. O homem e a mulher não são seres fixos mas seres em andamento; estar em situação é tentar chegar à autenticidade e é também tentar sair de si próprio para melhor se compreender. Viajar é em primeiro lugar apropriar-se do mundo.

Éric Levéel, "Introduction". Simone de Beauvoir. Tout Connaître du Monde. Colecção Voyager Avec... Paris, La Quinzaine Littéraire, 2008, p. 10-11.

8 comentários:

  1. (Apesar de...)

    Entretanto, não se deve acreditar que todas as dificuldades se atenuem nas mulheres de temperamento ardente.
    Ao contrário, podem exasperar-se. A perturbação feminina pode atingir uma intensidade que o homem não conhece.

    Simone de Beauvoir

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  2. ALCARAVÃO
    Migrar, sim.
    Sair de mim
    para voltar assim:
    eu sem mim.

    " A modernidade do pensamento religioso de Camões talvez resida, no entanto, na dialéctica em que articula um Cristo essencialmente transmundano e alheio aos destinos do homem com a consequente necessidade da divinização de próprio homem através do conhecimento da sua contraditória humanidade. Como Camões disse pela boca de Tétis, o "[...] sumo Deus, que por segundas/ causas obra no Mundo[...]" (X,85). Essas "segundas causas" foram representadas, n'OS LUSÍADAS, pelos mesmos deuses pagãos que depois afirmou serem o produto do fingimento humano. Eles são, portanto, uma metáfora da própria humanidade, a representação poética das suas forças e das suas potencialidades interiores. Ao reivindicar, assim, para a poesia a função de veículo estruturante da evolução do homem para o conhecimento, Camões está não só a sublinhar o valor iniciático do que escreveu, como também a implicar a conclusão de que o sentido da vida é aquele que os homens lhe imprimirem."

    Helder Macedo, CAMÕES E A VIAGEM INICIÁTICA, Lisboa, Abysmo, 2013, pp. 114-115.

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  3. Olhou em volta com angústia; não, nada a poderia ajudar. Precisava arrancar-se a si própria de orgulho, de piedade ou de ternura. Sentia dores nas costas, nas têmporas, mas até essa dor lhe era estranha. Precisava ter alguém ao lado, para se lamentar: "Estou cansada, sou infeliz". Então, naquele instante vago e miserável tomaria, com dignidade, o seu lugar na vida. Mas não havia ninguém.
    (...)
    O dia passara à espera dessas horas e agora elas corriam vazias e constituíam apenas uma espera (...)
    Tudo, afinal, era uma corrida sem objetivo. Somos lançados indefinidamente para o futuro, mas quando este se torna presente, é preciso fugir.

    Simone de Beauvoir, in A Convidada

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  4. Em 1960 e pouco, duas miúdas caldenses, a Eduarda Rosa e eu, fomos à "Tertúlia" e encomendámos dois livros de leitura difícil. Recebemos os livros embrulhados e avidamente, no parque, tentámos ler alguns parágrafos de "A Náusea"... Durante meses, o livro acompanhou-nos... ninguém deu conta... (não era isto que queria contar...)

    "Le 6 novembre 1939
    Mon charmant Castor

    Comme c’était triste hier soir de laisser cette petite personne toute seule dans le noir. Un moment j’ai eu l’idée de retourner et puis j’ai pensé : « À quoi bon ? Ça sera cinq minutes et puis après ça sera plus dur de se séparer. » J’ai marché très vite jusqu’à l’école, je savais tout le temps que cette chère petite personne était encore là, à cinq cents mètres de moi, ça m'a empêché de lire tout un grand temps. Mais vous savez, au fond, j’étais profondément heureux. Vous comprenez, ça m’avait secoué, ces cinq jours, secoué dans ma vase et puis j’y retombais, mais c’est formidable tout ce que ça m’a donné. D’ailleurs ça m’a donné une seule chose, tout simplement mais que rien ne peut valoir, votre présence toute seule et toute nue et vos petits visages et vos tendres sourires et vos petits bras autour de mon cou. Mon amour c’est bien vrai, ce qu’on disait souvent, que je pourrais vivre avec vous n’importe où. Après ça j’étais un peu inquiet, pas bien sûr de moi et puis je me demandais qu’est-ce que vous deveniez, si tout marchait bien pour vous ; j’imaginais ce train noir et froid.
    /.../O mon charmant Castor, je voudrais que vous sentiez mon amour aussi fort que vous sentez le vôtre. Je suis revenu et toute la matinée j’ai gratté sur mon petit carnet. Mais pas sur ce qu’on avait dit ; au fond c’est tellement simple : j’ai été profondément et paisiblement heureux et maintenant je ne veux pas avoir de regrets, voilà tout ce qu’il y aurait à dire. J’ai senti toute la journée que j’étais en état de regarder ma situation avec un œil neuf mais je fermais soigneusement cet œil-là. A présent, à force d’être fermé, comme l’œil de la taupe il s’est résorbé. Voilà ce que je n’ai pas écrit. Mais j’ai continué de 9h à 11h (après un sondage exécuté seul avec Keller) à coucher sur le papier des considérations sur mon adolescence – et puis encore un peu au Cerf (où on m’a posé les questions polies qui s’imposaient) de 11h à 12h. Puis j’ai déjeuné (du veau, en signe de deuil – on me proposait aussi des salsifis mais je n’ai pas voulu pousser le deuil jusque-là et j’ai obtenu des pommes sautées) et Mistler est venu avec Courcy. Appel. Puis j’ai encore gratté le papier jusqu’à maintenant. /.../ Mon cher amour, ma petite fleur, on n’a fait qu’un, n’est-ce pas ? Je vous aime si fort, si fort et je le sens bien. Vous avez été un petit charme et vous m’avez rappelé ce que c’était que le vrai bonheur. Je vous embrasse sur vos deux petites joues."

    (Texte : Lettres au Castor et à quelques autres, 1926-1939, Jean-Paul Sartre, Paris, Gallimard .)

    Despedi-me de Paris em 2000, depois de lá ter estado, em trabalho (ME), durante oito dias... Hoje, ao escutar um colega parisiense com os filhos na piscina, percebi que desejo lá voltar... !

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  5. Ele sorriu, de maneira indefinível, e disse: "Agora é a cerimónia do adeus!"
    Toquei-lhe no ombro, sem responder. O sorriso, a frase me perseguiram durante muito tempo. Atribuía à palavra "adeus" o sentido supremo que ela teve alguns anos depois: mas na época eu era a única a pronunciá-la.
    (...)
    Ao regressar, no final de setembro, Sartre mostrava-se admiravelmente bem. Sentiu-se satisfeito por se encontrar em minha casa. "estou contente por estar aqui", disse-me. "O resto é-me indiferente. Mas agrada-me estar aqui." Ali passamos noites felizes e eu, mais ou menos, voltara a sentir-me despreocupada. Não por muito tempo. (...)
    Sua morte nos separa. Minha morte não nos reunirá. Assim é: já é belo que as nossas vidas tenham podido harmonizar-se por tanto tempo.
    Simone de Beauvoir, in A Cerimónia do Adeus

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  6. Cada manhã, antes mesmo de abrir os olhos, reconheço a minha cama, o meu quarto. Mas se durmo à tarde, no meu estúdio, experimento, às vezes, ao acordar, um espanto pueril: por que sou eu? O que me surpreende - como à criança quando toma consciência da sua própria identidade - é o facto de me encontrar aqui, agora, dentro desta vida e não de uma outra: por que acaso? Se o considero do exterior, em primeiro lugar parece inacreditável que eu tenha nascido. A penetração de um determinado óvulo por um determinado espermatozoide, implicando o encontro e o nascimento dos meus pais e de todos os seus ancestrais, não tinha uma hipótese entre milhares de acontecer. Foi um acaso, conforme o estado atual da ciência, totalmente imprevisível, que me fez nascer mulher. Depois, para cada instante do meu passado mil futuros diferentes me parecem concebíveis: adoecer e interromper os meus estudos; não conhecer Sartre; qualquer outra coisa. Lançada ao mundo, fui submetida às suas leis e aos seus acidentes, dependendo de vontades alheias, de circunstâncias, de história: estou, portanto, justificada por sentir a minha contingência; o que me atordoa é que ao mesmo tempo não o estou. O problema não existiria se eu não tivesse nascido: tenho de partir do facto de que existo. E, certamente, o futuro daquela que fui podia fazer-me diferente do que sou. Mas então seria essa outra quem se interrogaria sobre si mesma. Para aquela que diz eis-me, não há conciliação possível. No entanto, essa necessária coincidência do sujeito com a sua história não é suficiente para dissipar a minha perplexidade. Minha vida: familiar, ela me define e eu sou exterior a ela. O que é exatamente esse objeto bizarro?

    Simone de Beauvoir, in Balanço Final

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  7. Estou aqui. Eles vivem, falam comigo, estou viva. De novo saltei de pés juntos na vida... já que o meu coração continua a bater, será preciso que ele bata por alguma coisa, por alguém. Já que não sou surda, ouvirei chamarem-me de novo. Quem sabe? Talvez um dia eu seja feliz outra vez. Quem sabe?

    Simone de Beauvoir, in Os Mandarins

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  8. J'ai eu ce matin une lettre de vous, si tendre, mon amour; ça m'a fait fort comme tout, tout ce que vous me dites, que je ne suis pas chose dans votre vie; je le sens bien; vraiment on ne fait qu'un vous et moi et c'est une force formidable, et quand je le sens comme maintenant je peux envisager absolument n'importe quoi.

    Simone de Beauvoir, in "Les Lettres à Sartre"

    Sartre répondait exactement au vœu de mes quinze ans : il était le double en qui je retrouvais, portées à l'incandescence, toutes mes manies. Avec lui, je pourrais toujours tout partager. Quand je le quittai au début d'août, je savais que plus jamais il ne sortirait de ma vie.

    Simone de Beauvoir, in "Mémoires d'une jeune fille rangée"



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