sexta-feira, 18 de abril de 2014

Sherlock Holmes no Porto. Donan Coyle

Havia tempo já que a saúde de Sherlock Holmes não parecia satisfatória. As sumidades médicas inglesas a quem o apresentei eram, como eu, de opinião que só uma prolongada estação no Sul da Europa podia restabelecê-lo. Aconselharam-lhe Nice, Cannes, as vilas da Riviera italiana. Mas Sherlock Holmes não se resolvia a abandonar Londres. Passava dias inteiros estendido sobre uma preguiçadeira de verga na nossa casa de Baker-Street, envolto em nuvens de fumo que continuamente se escapavam do seu cachimbo de cerejeira. Negava-se quando vinham procurá-lo, e já três vezes se recusara a auxiliar as diligencias do nosso conhecido inspector Lestrade, da Scotland-Yard. Durante seis meses uma só vez condescendeu em sair da sua inacção. Foi no caso do assassinato de Hyde Park, em que Homes apresentou o verdadeiro culpado quando o tribunal ia pronunciar a condenação de um inocente.
Um dia, porém, foi-me necessário vir ao Porto para salvar importantes valores comprometidos na falência da casa Tompson and C.o, exportadora de vinhos. Perguntei a Sherlock Holmes se lhe não seria desagradável acompanhar-me.
- Pois vamos lá, dr. Watson, respondeu prontamente. Aí está uma boa oportunidade de ver que tal me dou com um clima do Sul.
Pode calcular-se o júbilo com que recebi a aquiescência de Holmes, não só pela boa companhia que me proporcionava, mas ainda pela certeza de que a sua saúde muito havia de lucrar com o passeio.
A viagem dispôs magnificamente o meu amigo, e decerto os leitores se recordam de que, mal desembarcado, logo averiguou um caso de evasões do Aljube que tanta retumbância teve.
Em pouco tempo, Sherlock Holmes readquiriu a antiga energia. Abandonou o maldito vício da cocaína, e como a estada lhe fosse salutar no Porto, resolvemos fixar aí a residência por alguns anos. Mistress Hudson, a nossa governanta de Londres, veio ter connosco. Abandonámos o Hotel de Francfort, onde de começo nos instalámos. Alugámos casa. Reatámos a nossa antiga vida de Baker-Street. Bem depressa começaram a  surgir por cima dos móveis, provetas e tubos de ensaio. Uma prateleira vergava ao peso de jornais relatando causas-crime. E já a um canto se anichara um forno de reverbero.
Foi então grande a série de causas célebres que a intervenção de Holmes elucidou. Não esqueceram ainda investigações como a do furto do Museu Zuaga, a do roubo da mala do correio de Braga, a da falsificação do Banco Lusitano, a do suposto filho do Conde de Campo Lindo e tantas outras.
O barulho que em torno destes casos fizeram os jornais foi considerável e por momentos abafou o ruído das questões políticas, que em Portugal são clamorosas.

Donan Coyle, introdução aos contos "O cadáver que se evade" e "O truc de Mr. Raymond" publicado no 1º vol. de Mundo Ilustrado, Porto, 1912.

O autor dos contos é João de Meira (1881-1913), usando o jocoso pseudónimo de Donan Coyle, médico, natural de Guimarães, que foi professor da Escola Médico-Cirúrgica do Porto e Director da Morgue do Porto.
Este texto foi publicado por Magalhães Basto em O Porto, na colecção "Antologia da Terra Portuguesa", Lisboa, Livraria Bertrand, s/d, [1960], p. 99-101.
Os dois contos de João de Meira foram republicados recentemente em Sherlock Holmes no Porto, de Donan Coyle (João de Meira). Colecção de minimis, nº 2, Ed. Sociedade Martins Sarmento, Guimarães, Dezembro de 2009.

1 comentário:

  1. ADENDA

    Parece um lapso deliberado - ou, pelo menos, muito de estranhar - que, no rol de "causas célebres" esclarecidas por Sherlock Holmes aquando da sua profícua estada no Norte de Portugal, não seja sequer mencionado pelo autor o "mistério do Gazela I"...
    Lugre-patacho de três mastros, construído em madeira nos estaleiros de Cacilhas em 1883 (e anos mais tarde reparado em Setúbal), era o único navio bacalhoeiro com proa redonda, à maneira de clipper, e linhas extremamente elegantes, desde a carranca esculpida à proa até ao painel de popa. Inconfundível!
    Tendo zarpado de Lisboa em Maio, devidamente integrado na frota bacalhoeira composta de escunas e de lugres de quatro mastros, foi dado como desaparecido, um mês mais tarde, nos bancos da Terra Nova,
    Dois anos volvidos, reapareceu ao largo de St. John, pairando numa manhã de nevoeiro cerradíssimo, O capitão, porém, era agora um finlandês enorme e de péssima catadura que afirmava chamar-se Andresen e comandar aquela embarcação, com bandeira norueguesa, ia para mais de quatro anos. A tripulação, de nacionalidades várias e difíceis de apurar, recusou prestar declarações à polícia inglesa estacionada naquela cidade.
    Devidamente escoltada, a embarcação veio surdir na barra do Douro cerca de cinco semanas mais tarde, em finais de Julho desse ano. E foi do domínio público que só a argúcia e bons ofícios do famoso detective inglês permitiram desvendar os factos e restituir a posse do Gazela I àquele que se apurou ser, por direito, o respectivo armador.

    De Voilier, CURIOSIDADES MARÍTIMAS, In "O Aveirense", Jornal Regional, 22 de Abril de 1912

    ResponderEliminar