sábado, 19 de abril de 2014

Depois de matar a noite nas tascas da capital, o vagabundo... Camilo José Cela

Às escuras sob a quente lona, por entre cadeiras de baloiço, aparadores, camas desmontadas e gaiolas vazias, aos saltos e safanões pelos caminhos e despenhadeiros de Castela, o vagabundo - que nunca pôs o nariz de fora a não ser para fumar um ou outro cigarro, não fosse o diabo fazer com que ele queimasse os móveis de Dom Frederico - viu-se em Madrid, ao cair da tarde, fresco e ligeiro como se não tivesse caminhado nem uma légua, coisa que, vendo bem, também não era mentira.
- Então? Fez boa viagem?
- Se fiz!
Depois de matar a noite nas tascas da capital - humildes e acolhedoras tabernas de tintorro e cerveja com gasosa; o palito de dentes espetado no queijo manchego; o passarinho frito e a anchova em vinagre: a sardinha em azeite, a ginjinha e os resultados dos jogos de futebol mostrados no quadro preto  - a gastar uns tostões para obsequiar o motorista do camião, e depois de ter ido cumprimentar a menina Finita, que vivia em Gravina, nº 20, instituição que já não é nem uma sombra do que foi, o vagabundo, no dia seguinte, sai de Madrid como pensa que se deve sair de Madrid, ao meio dia em ponto e já a cair a bola do relógio da Puerta del Sol.
- Vamos embora?
- O senhor é que manda.

Camilo José Cela, Vagabundo ao Serviço de Espanha. Antologia organizada por Ricardo Bada, Porto, Asa, 2002 [1ª edição 1948], p. 131-132

1 comentário:

  1. EM MADRID, SABE DEUS

    Soou uma campainha de prata anunciando que o intervalo tinha terminado. Entraram na sala pela mesma ordem por que tinham saído, e ocuparam os seus cadeirões. O Inquisidor-mor concedeu a palavra ao padre Villaescusa.
    - Reverendos padres, foram três as questões que nos congregaram nesta sessão solene: posta de lado a primeira, cuja solução acato por obediência, embora convencido de que, nessa comissão encarregada de a resolver, haverá oportunidade de ouvir a minha voz, passo a expor a segunda: Sua Majestade o Rei manifestou, dando com isso provas de um descaramento que só pode tolerar-se por ser régio, o seu desejo de ver a Rainha nua. As leis de Deus opõem-se; as do reino também, ou, pelo menos, os nossos inveterados costumes e protocolos, que têm força de lei. Qual é a opinião de Vossas Paternidades?

    Gonzalo Torrente Ballester, CRÓNICA DO REI PASMADO, Lisboa, Caminho, 1992, pp. 63-64.

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