domingo, 18 de maio de 2014

Viagem a Cantão (1). Blasco Ibañez

Quero visitar a cidade de Cantão, e dizem-me todos a mesma coisa:
- O senhor não vá. Parece que andam todos os dias aos tiros os partidários do doutor e os seus contrários. Além disso, se se juntarem, uns e outros, será para matarem os europeus por causa das alfândegas.
Sei que há algum exagero nestas informações, mas que de qualquer modo é fora de dúvida que a capital da China do Sul vive, há tempos a esta parte, em estado de revolta.
Cantão foi a única metrópole do Extremo Oriente que europeus e americanos conheceram durante séculos. Pequim permaneceu fechada para o mundo branco até ao último terço do século XIX. Os filhos do Céu, desejosos de conservarem isolados o seu vasto império, concederam Cantão como único porto em podiam dar entrada os navios das nações cristãs.
Quando os portugueses do século XVI ancoraram pela primeira vez em frente dessa cidade, viram que outros navegantes não europeus os haviam precedido no descobrimento. Eram os marinheiros árabes que, desde muito antes, aí tinham depósitos de mercadorias e uma mesquita. Durante cem anos, os capitães portugueses monopolizaram o comércio com Cantão, trazendo à Europa, pelo Cabo da Boa Esperança, as sedas e porcelanas. Os espanhóis adquiriram esses mesmos géneros em Manila, enviados pelos negociantes cantoneses e a Nau de Acapulco levava-os até Nova Espanha através do Pacífico.
Ia já bem adiantado o século XVII quando os ingleses começaram a visitar Cantão para carregarem nos seus navios o chá, erva cada vez mais apreciada na Europa e América, e que deu vida a uma navegação para abastecer os mercados de Liverpool, Salem, Boston e Nova Iorque. Essa afluência de barcos europeus e americanos fomentou a emigração indígena, à qual se deve o facto de todos os chineses espalhados pelo mundo serem das províncias do sul e considerarem Cantão a verdadeira capital, de preferência a Pequim.
Acumulando alguns desses emigrantes fortunas consideráveis na América, o seu desejo foi voltarem para Cantão para as desfrutarem, aumentando a riqueza da cidade. Os que não regressaram à pátria mantiveram correspondência com as famílias, e tudo isso fez que Cantão seguisse o movimento liberal da nossa época, pensando de maneira diferente do resto do Império.
Têm sido cantoneses o mais ilustrados chineses dos últimos tempos. De há maio século para cá, a mocidade intelectual de Cantão tem completado os estudos nos Estados Unidos e na Europa. Alem disso, esses chineses do sul são mais inquietos e menos pacientes que os do norte. Os seus antepassados foram muitas vezes piratas ou viveram nas montanhas como rebeldes. Nos últimos anos do Império, os cantoneses entoavam pelas ruas cantigas injuriosas para o Filho do Céu e governantes de Pequim, sem que as autoridades imperiais da cidade ousassem tomar providências contra tais irreverências.
Como era lógico, o movimento republicano que pôs termo à dinastia dos Muito Puros teve origem em Cantão. Mas estabelecida a República, os filhos desta cidade recusaram-se a continuar a ser governados de Pequim, como no tempo do Império, declarando-se independentes e constituindo a chamada República do sul.
Este separatismo não é um coisa incidental, inventada pelas divergências dos partidos políticos. Na realidade, existem duas Chinas, completamente diferentes. O habitante de Pequim, de estatura elevada, sereno de rosto, parco de palavras, meio tártaro e meio mandchu, não se parece com o chinês exuberante, imaginativo, de individualismo ingovernável, que povoa as províncias meridionais e que, ao espalhar-se como emigrante pela América, se intitula orgulhosamente cantonês.
O doutor Sun Yat Sen, fundador da República do sul e seu eterno Presidente, é um médico de Cantão, que estudou nos Estados Unidos, trabalhando com energia no tempo do Império para fazer triunfar a República. Agora porém dentro da sua própria casa luta com adversários numerosos, que lhe dificultam a politica interna e, além disso, faz frente às nações estrangeiras, mantenedoras do governo de Pequim, que se negam a reconhecer a República do sul.
No momento actual sustenta luta aberta com todas as potências. Estas cobram rendimentos das alfândegas chinesas e, depois de haverem guardado parte deles para indemnizações concedidas há anos, entregam o resto ao governo de Pequim. O doutor Presidente do sul opõe-se a que as potências intervenham nas alfândegas dependentes de Cantão, se elas não se comprometerem a entregar-lhe  excesso, dado até agora aos seus inimigos de Pequim.
Encontram-se actualmente ancorados no rio Pérola navios de guerra de todas as nações que têm interesses na China, para intimidarem Sun Yat Sen com essa demonstração naval.


Vicente Blasco Ibañez, A Volta ao Mundo. 2ª edição, Lisboa, Livraria Peninsular Editora, 1944.  2º vol., p. 171-174. A edição original, com o título La vuelta al mundo de un novelista  é de1925. Informações úteis sobre V. Blasco Ibañez podem ser encontradas no site http://www.blascoibanez.es/index.html, da Fundación Centro de Estúdios Vicente Blasco Ibañez.

9 comentários:

  1. "Vivi e trabalhei na China durante a primeira guerra civil nacionalista-comunista e durante parte da segunda guerra mundial. Finalmente, pude voltar em 1960, e voltar novamente em 1964-1965 e agora em 1970. Lois Wheeler, atriz e minha mulher, nunca estivera na China, embora lhe tivessem oferecido um visto para vir comigo. Em ocasiões anteriores, todavia, o nosso Departamento de Estado recusou «validar» o passaporte dela para a China, com o fundamento de que «não era de interesse nacional». Desta vez veio sem esperar pela autorização de Washington.
    (...)
    Agora tinha Lois a meu lado, uma das pouquíssimas americanas que até agora vieram à República Popular, com um par de olhos castanhos muito atentos e observadores para ajudar os meus próprios olhos. Chegámos a Pequim no princípio de Agosto, sob aquilo que os pequineses chamam o Tigre Calor - um pouco mitigado, atualmente, pela sombra de numerosíssimas árvores e por florestação próxima.
    (...)
    Passámos uma semana inteira em duas universidades que eu conhecia bem - Yenchin, onde tinha ensinado, e Tsing Hua, uma escola de engenharia de renome que fica próximo. Nestas duas instituições escutámos relatos em primeira mão dos anos de combate cultural e da sublevação universitária, com a história dos guardas vermelhos e suas sequelas. Vimos hospitais modernos e rurais, uma fábrica de locomotivas e uma siderurgia, e ouvimos mais histórias a respeito da Revolução Cultural. Voámos até à província de Xensi, no Noroeste, e, da capital desta província, Sian, fomos a Iunão, famosa capital da guerrilha durante a guerra. Prosseguimos para Oeste até Pao Na (Tze Dan) - fomos os primeiros estrangeiros a visitar este lugar desde 1945 - e penetrámos nas montanhas onde tive o meu primeiro encontro com Mao Tsé.Tung, em 1936, quando Mao era um bandido vermelho perseguido. Vimos uma fazenda do Estado dirigida pelo exército e uma escola de reforma política onde um antigo presidente da Comissão do Partido em Sian nos mostrou as pocilgas que tinha agora a seu cargo. E voltámos para Sian e Pequim, com muitos espetáculos teatrais e muitas conversas com velhos amigos, no decorrer de muito boas refeições, e depois fomos ao Nordeste, para lá da Grande Muralha. Mais indústrias, uma escola para surdos-mudos dirigida por acupuncturistas militares, o grande complexo siderúrgico de Anchan - e depois até ao sul, para ver a Feira de Cantão. Voltámos a subir a costa oriental e as plantações de chá de Chequião, fomos a Xangai e ao curso inferior de Iangtsé, visitando mais comunas e falando com mais gente amistosa.
    Ao todo, visitei onze comunas em seis meses, antes de sair da China, em Fevereiro, perfazendo um total de de trinta e três comunas - em todos os pontos da rosa dos ventos chinesa - onde fui acolhido durante os últimos dez anos. Agora, a terra está cultivada em toda a parte, está mais nivelada, tem melhores socalcos, está densamente povoada de árvores, mais próxima do Estado-Jardim que Mao prometera há anos. e em toda a parte demos causa a grandes movimentos de surpresa entre as populações, que havia anos não viam um ocidental."
    Edgar Snow, in A Longa Revolução. Publicações D. Quixote.

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  2. À Memória do Dr. Sun Yat-Sen
    12 de novembro de 1956

    Prestemos homenagem ao nosso grande precursor revolucionário, o Dr. Sun Yat-Sen!
    Prestamos-lhe homenagem pela luta intensa que ele desenvolveu no período preparatório da nossa revolução democrática contra os reformistas chineses, assumindo claramente a posição de um democrata revolucionário chinês. Nesta luta ele foi o porta-estandarte dos democratas revolucionários da China.
    Prestamos-lhe homenagem pela contribuição significativa que deu durante o período da Revolução de 1911 quando conduziu o povo ao derrube da monarquia e à fundação da república. (...)
    Legou-nos muitas coisas úteis na esfera do pensamento político. (...)
    O Dr. Sun era um homem modesto. Ouvi-o falar em muitas ocasiões e a sua força de carácter impressionou-me. Pela maneira como se aplicou ao estudo tanto do passado como do presente da China e dos países estrangeiros, incluindo a União Soviética, pude ver que ele era um homem com um espírito recetivo.
    Deu-se de alma e coração à transformação da China, dedicando toda a sua vida à causa; sobre pode dizer-se com toda a justiça que fez o melhor, deu o máximo até o seu coração ter deixado de bater.
    Como muitas das grandes figuras da história que estiveram na primeira linha dirigindo o curso dos acontecimentos, também o Dr. Sun teve as suas insuficiências. Tais insuficiências devem ser explicadas à luz das condições históricas para que possam ser explicadas à luz das condições históricas para que possam ser compreendidas; não devemos ser demasiado críticos em relação aos nossos predecessores.

    Mao Tsé-Tung, Obras Escolhidas. Volume V. Editora Vento do Leste (1977)

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  3. A Questão das Minorias Nacionais

    No nosso país, as minorias nacionais constituem uma população de mais de 30 milhões de habitantes. Apesar de não representarem mais do que seis por cento da população total do país, elas habitam, no entanto, vastas regiões que abarcam cerca de 50 por cento a 60 por cento da área total do território nacional. Por isso, é uma necessidade imperiosa o estabelecimento de boas relações entre os Hans e as minorias nacionais. A chave deste problema está em superarmos o chauvinismo Han. É necessário ao mesmo tempo superar o nacionalismo regionalista das minorias nacionais onde quer que ele se manifeste. Tanto o chauvinismo Han como o nacionalismo regionalista dificultam a unidade entre as nacionalidades; são contradições existentes no seio do povo que devem ser superadas.
    (...)
    Mao Tsé-Tung, Obras Escolhidas. Volume V.Editora Vento do Leste. Lisboa (1977)

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  4. The founder of the first chinese republic, Dr. Sun-Yat-Sen wrote in his testament in 1925, “for forty years I have devoted myself to the cause of the people’s revolution with one of the view: the elevation of China to a position of freedom and equality among the nations. My experiences during those forty years have convinced me that to obtain this goal we must bring about an awakening of our own people and ally ourselves in common struggle with those people of the world who regard us as equals.” p. vi

    Huang Hua, Preface in Rebel out of China, Endicott, James G., Beijing, Foreign Languages Press, 2004.

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  5. ANDORINHÃO
    - Serei o quinto?
    Comeram-me o ninho!
    Nem sei se sinto...
    - Mentes, pinto!
    - Nunca! Não minto.

    "O leitor não espere de mim abundância de eloquência e ornamento em composição de palavras, somente se contente em eu ser fiel e verdadeiro na singela narração. E para que lhe não desagrade à primeira face a leitura, parecendo-lhe ter falta, pareceu-me bem mostrar-lhe aqui a ordem de proceder nesta obra.
    Primeiramente tratarei da China em geral, assim da gente como da terra. E logo descerei em particular, tratando do reino e províncias. E depois falarei de edifícios e embarcações. E após isto do aproveitamento das terras e ocupações dos homens, e dos trajos dos homens e das mulheres, e dalguns seus usos e costumes. Tratarei largamente adiante dos que regem a terra e do governo dela. E no fim de tudo, dos cultos e adorações, e do aparelho que achei na terra para se fazer cristandade, e dos impedimentos que para isso há. E ainda que neste epílogo vá sucinto debaixo da comunidade sobredita, tratarei das coisas da China miudamente.
    Sei que os curiosos acharão muitas coisas que folgarão de ler. E ainda que algum, lendo, ache alguma coisa que não seja tanto de seu gosto, não deixe por isso de ler o que vai avante, parecendo-lhe que todo o mais é tal. Digo isto porque na lição das coisas peregrinas algumas vezes enfada o que bem não se entende, e acontece por um pouco não entendido desprezar-se tudo o demais, não devendo ser assim. E não se deve perder o gosto do muito e do principal pelo desgosto do pouco.
    Dou também aqui aos leitores um aviso necessário, para que possam conjecturar a grandeza das coisas da China, que ainda que comummente as coisas ao longe soem mais daquilo que em si são, esta é pelo contrário, porque muito mais é do que soa, e faz mui diferente impressão de vista e lida ou ouvida, o que se cumpriu em mim e noutros que depois de vistas as coisas da China dissemos: 'Isto é de se ver e não se há-de ouvir.'."

    Frei Gaspar da Cruz, TRATADO DAS COISAS DA CHINA. (ÉVORA , 1569-1570), Lisboa, Edições Cotovia, 1997, pp. 69-70.

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  6. Le cantonais (yuè) est l'un des 5 dialectes majeurs de la langue chinoise appelé aussi "hanyu (le mandarin)", c'est une langue parlée par 6% de la population de langue hanyu pratiquée dans le monde, soit 46 millions de locuteurs en Chine populaire, ainsi que 5 millions à Hong Kong, 700 000 en Malaisie, 500 000 au Viêt-nam, 500 000 à Macao et 300 000 à Sinagapour. L'histoire du cantonais est vieille de plus de 2000 ans, en comparaison avec le mandarin qui n'a que 7 à 8 siècles. En effet, le cantonais est une langue parlée particulièrement dans le sud de la Chine, dans les provinces de Canton et du Guangxi, à Hong Kong et à Macao, aussi parmi les nombreuses colonies de Chinois d'outre-mer.
    A la différence du mandarin qui utilize 4 tons, la prononciation du cantonais peut utiliser jusqu'au 9 tons, c'est-à-dire que certains fonèmes peuvent se prononcer de neufs façons diferentes, avec neufs sens différents en fontction de l'intonation et inflexion données à la voix! Il s'écrit au moyen des sinogrammes, dont un certain nombre lui sont propres et ne se retrouvent pas en mandarin /.../ p.405

    in Guide du Routard Chine. Canton (Guangzhou). Beijing, s/d.

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  7. A propósito das últimas notícias sobre terrorismo em Cantão, posso afirmar-vos que se vive aqui com muita tranquilidade. Não há sequer roubos... Seis pessoas foram vítimas de armas brancas a 8 de Maio...
    Aqui, o dia principia muito cedo. O jantar começa às 17H30. Às 22H00 estamos em casa, mesmo se formos a algum espetáculo... Por vezes, até aqui no Campus, há casos de convivência mal resolvida... tenho algumas "estórias" interessantes... Há muitos professores e alunos estrangeiros... Estes temas são tratados pelas autoridades universitárias com muita cautela...
    Mas vivi oito anos em Barcelona (1985-93), fui professora na Universidade Central, assisti a atentados, alguns de grandes proporções... Em épocas de determinados eventos, tive medo... Aqui não há agressividade de ninguém face ao cantonês... falam cantonês e mandarim... Conheci, em Barcelona, quem proibisse os filhos de falar castelhano...
    A educação, o temperamento e a filosofia do povo chinês é muito amigável e tranquila...
    Cantão é a cidade chinesa que mais forasteiros recebe, sobretudo durante o período da feira... E não há quem não fique maravilhado!
    Estamos na época das chuvas, de algum calor e da humidade... Temos uma formosa montanha, a de Baiyun, que se avista de qualquer ponto da cidade e eu vivo ao lado a dois ou três metros... é incrível tanta beleza... recordo África neste cheiro de terra molhada...

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  8. Que interessante este seu testemunho, Deolinda! Fico-lhe muito grata por escrever em discurso direto, sem máscara, sobre a experiência por si vivida nesse lugar notável, que já me apetece visitar.
    Abraço!

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