terça-feira, 6 de maio de 2014

A viagem de Fermina Daza e Florentino Ariza (3). Gabriel Garcia Marquez

- Vai ser como morrer – disse.
Florentino Ariza surpreendeu-se porque era o adivinhar de um pensamento que não o abandonava desde que começara a viagem de regresso. Nem ele nem ela podiam imaginar-se noutra casa que não fosse o camarote, comendo de maneira que não a do navio, integrados numa vida que lhes seria alheia para sempre. Era, com efeito, como morrer. Não conseguiu dormir mais. Ficou deitado na cama com as duas mãos cruzadas sob a nuca. A um dado momento, a pontada de América Vicuña fê-lo retorcer-se de dor e não conseguiu adiar a verdade por mais tempo: fechou-se na casa de banho e chorou à sua vontade, sem pressa, até à última lágrima. Só então teve a coragem de confessar quanto a tinha amado.
Quando se levantaram já vestidos para o desembarque, tinham deixado ara trás os canais e os pântanos da antiga passagem espanhola e navegavam por entre os escombros dos barcos e dos tanques de óleos mortos da baía. Erguia-se uma quinta-feira radiosa sobre as cúpulas douradas da cidade dos vice-reis, mas, do tombadilho, Fermina Daza não conseguiu suportar a pestilência das suas glórias, a arrogância dos seus baluartes profanados pelas iguanas: o horror da vida real. Nem ele, nem ela, sem o dizerem, se sentiram capazes de se renderem de um modo tão fácil.
Encontraram o comandante na sala de jantar, num estado de desordem que não estava de acordo com a pulcritude dos seus hábitos:  a barba por fazer, os olhos raiados pela insónia, a roupa transpirada da noite anterior, a fala alterada pelos arrotos a anis. Zenaida dormia. Começava a tomar o pequeno almoço em silêncio quando um barco a gasolina da Inspecção Sanitária mandou parar o barco.
O comandante, da ponte de comando, respondeu aos gritos às perguntas da patrulha armada. Queriam saber que tipo de peste traziam a bordo, quantos passageiros vinham, quanto estavam doentes, que possibilidades havia de novos contágios. O comandante respondeu que só traziam três passageiros, todos com cólera, e que se mantinham em total reclusão. Nem os que deviam ter subido em La Dorada, nem os vinte e sete homens da tripulação tinham tido qualquer contacto com eles. Mas o comandante da patrulha não se deu por satisfeito e ordenou que saíssem da baía e que esperassem no pântano de Las Mercedes até às duas da tarde, enquanto se preparavam os trâmites para o navio ficar de quarentena. O comandante soltou um palavrão de carroceiro e com um gesto feito com a mão mandou o piloto dar meia volta e voltar aos pântanos.
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Gabriel Garcia Marquez, Amor nos Tempos de Cólera. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1987, p. 368-369.

2 comentários:

  1. MAR DE SARGAÇO

    Bela e trémula como um pedaço de sargaço
    Boiado na corrente inútil,
    VIu o poeta das fraquezas de aço
    E de alva clâmide inconsútil.
    Parou, abriu os olhos redondos
    (Os seios - redondos),
    E, como um fruto perfeitamente aberto,
    Esperou do céu encoberto
    A hora de ser sorvido e dar ciência.
    Mas o poeta era vago
    E ela perdeu a paciência.

    Depois, virando ao Norte as ancas do regresso,
    Procurou o seu lago,
    Esse amplo esquecimento incolor que a embebia.
    E era bela.
    Mas já nada lhe peço:
    Vi seu contorno arder lá numa estrela
    Como o fruto de luz que em seu olhar havia.

    Assim foi: com simplicidade
    E (o que é mais) sem esteira.
    Tranquilo, o mar ao meio é o selo da verdade
    E atesta como foi a Última ou Primeira.

    Vitorino Nemésio, "Minuete da Impaciente", IN POESIA (1935/1940), Lisboa, Bertrand, 1986, pp. 108.

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  2. Maria Costa06/05/14, 21:12

    Horário do Fim
    morre-se nada
    quando chega a vez

    é só um solavanco
    pela estrada por onde já não vamos

    morre-se tudo
    quando não é o justo momento

    e não é nunca
    esse momento

    Mia Couto, in Raiz de Orvalho e Outros Poemas

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