quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Viajava pela primeira vez. Gabriel Garcia Márquez


Eram os únicos passageiros da modesta carruagem de terceira classe. Como o fumo da locomotiva continuasse a entrar pela janela, a menina levantou-se do banco e colocou nele os únicos objectos que traziam: um saco de plástico com algumas coisas para comer e um ramo de flores envolvido em papel de jornal. Sentou-se no banco fronteiro, afastada da janela, em frente da mãe. Ambas guardavam um luto rigoroso e pobre.
A menina tinha doze anos e viajava pela primeira vez. A mulher parecia velha de mais para ser mãe dela, por causa das veias azuis das pálpebras, e do corpo pequeno, franzino e sem formas, metido num vestido talhado como uma sotaina. Viajava com a coluna vertebral firmemente apoiada nas costas do assento, segurando no regaço, com ambas as mãos, uma bolsa de verniz sem brilho. Tinha a escrupulosa serenidade de pessoa acostumada à pobreza.

Gabriel Garcia Márquez, "Uma Sesta de Terça-Feira", in Contos Completos, 1947-1992. 6a edição. Lisboa, Publicações D. Quixote, 2013, p. 17-18.

2 comentários:

  1. VER PASSAR

    Veio o comboio e mudou a Vila. As lojas encheram-se de utensílios que, antes, apenas se vendiam nos ferreiros e nos carpinteiros. O comércio desenvolveu-se, construiu-se uma fábrica. As oficinas faliram; os mestres ferreiros desceram a operários, os alvanéis passaram a chamar-se pedreiros e também se transformaram em operários. Apareceu a Guarda, substituiu os pachorrentos cabos da paz e prendeu os valentes. As mulheres cortaram os cabelos, pintaram a boca e saem sozinhas. Os senhores tiram agora os chapéus uns aos outros, fazem grandes vénias e apertam-se as mãos a toda a hora. Vão à missa com as mulheres, passam as tardes no Clube, e já não descem ao Largo. Apenas os bêbados e os malteses se demoram por lá nas tardes de domingo.
    [...] Ninguém já desconhece o que vai pelo mundo. E alguma coisa está acontecendo na terra, alguma coisa de terrível e desejado está acontecendo em toda a parte. Ninguém fica de fora. Todos estão interessados.

    Manuel da Fonseca, "O Largo" IN O FOGO E AS CINZAS, Lisboa, Forja, 1978, pp. 12-13.

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  2. Sobre a viagem e os recursos que se possuem para ela, um pedaço de Maria Gabriela Llansol, que acabei há pouco de ler:

    "Tenho falta de viagens. A Sintra, à Baviera, à Floresta Negra, à Umbria. Tenho falta de uma pluralidade de ecossistemas, e de cidades em que entre hoje e saia no dia seguinte. Mas sempre a falta de meios, o ganhar o dia a dia, a esperança de ganhar um pouco mais para pôr de parte. Revolto-me e caio numa espécie de tristeza, caio numa espécie de tristeza e revolto-me. Precisava de ir longe, e voltar a casa. Ver realmente reflexo e reflectido."

    - Numerosas Linhas, Livro de Horas III (2013). Lisboa: Assírio & Alvim (p. 80)

    Ah, pois é!!! Já comprei o livro. Já não estou à porta de casa. Entrei lá dentro e leio-a, ávida.

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