sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Viagem a Myconos (1). Ruben A.

As histórias contam-se no cais - a ilha vive para quem vem. Chegar é ser recebido de braços abertos como tendo há pouco partido - a língua que se fala não impor­ta, uma pessoa senta-se à mesa e aparece logo quem oferece uma roda de resina ou de anis mergulhado em gelo, talvez mesmo estejam sentados os que só bebem água gelada, copos cheios a acompanhar o café turco, me­lado, doce de azedar o paladar. A vida é ali no cais que está e a ilha vem à baía ver quem chega. Quando não há visitantes a ilha descansa, alguns trabalham e outros falam. Na Grécia está sempre tudo a falar, percebe-se que gostam de falar e não dizer nada, falam, falam. Toda a gente fala e bebe qualquer coisa, fuma, oferece, dá.
Quando chegam as carradas, ou melhor as barcadas de turistas, só se vêem os turistas, os de Myconos vão a correr abrir as lojas, pôr o estendaI dos teares colado às janelas, às portas e escadas - as célebres escadas de Myconos que são todas exteriores. Vivem então os de Myconos dentro de casa e continuam a oferecer café, água, anis, cigarros a todo aquele que lá entra, mesmo que não compre nada, que não perceba patavina do artigo. Os de Myconos dão-se de amizade, de imediato, sem rodeios, sem protocolo. O único protocolo da ilha é não haver protocolos! Tudo é simples, corrido falado, acolhedor em grande escala. Há aqui em absoluto uma gran­de felicidade de viver, de contar, em troca de nada, de não ligar importância à vida. Tudo é muito simples, tudo se faz, tudo se arranja. Um par de calças e uma camisola encomendados às sete da tarde no célebre Joseph - o Jupien de Proust - está pronto certo, à medida e perfeito, ali às onze e um quarto da manhã do dia seguinte e entregue no hotel para maior conforto da prova final.
Myconos é uma ilha sem horário, está sempre aberta a tudo, fechada só quando os turistas embarcam para outros rumos. Nessa altura fecham-se as casas e na correnteza de todo o cais - que é avenida, rua, praça, monumento, santuário - a ilha continua a falar, a criar estilo, e das ruas estreitíssimas e em labirintos sai a fauna misturada a três sexos - os dois da ilha e um de importação recente, poliglota, hermafrodita e que de juba por tosquiar se ademana aos grupos em boutiques fantasques.
Misturo-me no branco caiado das ruas - as primeiras ruas caiadas e caiadas todas as semanas de lés a lés, ruas e casas vestidas de branco, tudo com degraus brancos numa apoteose em que o colorido dos habitantes sobressai como faúlha em forno de cal. O que me interessa em Myconos é a realidade visível da fé nas suas trezentas e sessenta igrejas e capelas, número magno para quatro mil habitantes. Num largo branco, pequeno, frente ao mar, com o único plátano da ilha, há cinco capelas com uma igreja no cento, tudo atento para branquear a alma. Passeio mais, ruas de uma Alfama imaculada, mais estreitas no cada vez, a um de frente, em bicha, sem cruzamentos. Chega nova barcada de turistas e salpicam momentaneamente a ilha de encarnados, amarelos, azuis, pretos, calças listradas, sacos multicolores. E o branco resiste, é forte, cromático. Continuo estático, indiferente aos que chegam ou partem.
Joseph aparece. Acabou de cortar mais meia dúzia de calças. Aparece e senta-se na ponta da baía, na primeira taberna com mesas e cadeiras frente ao semicírculo do cais. Senta-se e logo uma roda de amigos faz companhia, manda oferecer, - oferece anis com gelo, café turco, oferece o que se quiser tomar. Manda vir um prato com várias tiras de rostbeef com batatas fritas a fazerem de girassol. Um prato, uma faca e cinco garfos. O grande Joseph - Jupien faz o corte da carne e cada um de garfo em punho vai tirando uma lasca. A qualquer hora do dia, tanto faz, Joseph começa numa ponta do cais, às quatro horas já está a meio, e ao fim da tarde acaba no outro extremo, sempre numa mesa grande recheada de amigos e estranhos - melhor, os estranhos também são os amigos em Myconos. Amigos sempre diferentes, de nova colheita, de outros mundos. Ali, sentado como soba da ilha - Joseph, o único católico de Myconos, afirma que é ele quem tem a chave da igreja - ele é tudo - padre, sacristão, confessor, santo missal e a água benta. E é ali, em minoria de um, que a religião católica tem o seu defensor mais acérrimo, o único ser da ilha que pede ao padre de Tinos para três a qua­tro vezes por ano vir dizer missa à sua capela.

1 comentário:

  1. ILHAS E ILHÉUS

    "Vou falar de Creta e contar o que vi com os meus próprios olhos, mas não direi o que penso dela e do seu deus. Fecho o coração ao que os meus olhos viram. Devo dizer que, no decurso de todas as minhas viagens no Mundo conhecido, nada vi tão belo e estranho como Creta. Ela brilhou e refulgiu aos meus olhos, tal como o mar estende sobre a costa a sua espuma brilhante, as gotas de água resplandecem com as cinco cores do arco-íris e as conchas marinhas luzem com uma nacarada claridade. A alegria de viver e o prazer não são em nenhum lado tão imperiosos e caprichosos como em Creta. Ninguém, lá, é capaz de agir em desacordo com os seus impulsos, de tal modo que é difícil estabelecer contratos com os cretenses, pois todos mudam de opinião de um momento para o outro, ao sabor dos seus caprichos. Contam tudo o que pode causar prazer, mesmo se não for verdade, porque lhes agrada o som harmonioso das palavras."

    Mika Waltari, O EGÍPCIO, Lisboa, Liv.ª Bertrand, s.d., p. 218.

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