segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Sou mau viajante. Somerset Maugham

Embora seja muito viajado, sou mau viajante. O bom viajante tem o dom de surpreender-se. Tem um interesse perpétuo pelas diferenças que encontra entre o que conhece no seu país e o que vê no estrangeiro. Se possuir um sentido apurado do absurdo, encontra constantemente motivo para se rir do facto de as pessoas que o rodeiam não se vestirem como ele e não consegue deixar de se espantar por aquelas pessoas comerem com pauzinhos e não com garfos ou escreverem com um pincel e não com uma caneta. Como tudo lhe é estranho, repara em tudo o que, consoante o seu estado de espírito, pode ser divertido ou edificante. Já eu tomo tudo por certo tão rapidamente, que deixo de ver o que seja de invulgar no meu novo ambiente. Parece-me tão evidente que o birmanês use um paso colorido, que só com um esforço deliberado da minha parte consigo fazer a observação de que ele não usa calças como eu. A mim, parece-me igualmente natural andar de riquexó ou de carro e sentar-me no chão ou numa cadeira, e assim me esqueço quando estou alguma coisa estranha ou insólita. Eu viajo porque gosto de andar de um lado para o outro, aprecio a sensação de liberdade que isso me dá, agrada-me estar livre de laços, responsabilidades, deveres, e gosto do desconhecido. Conheço pessoas invulgares que me divertem por um momento e que, por vezes, me sugerem um tema para um texto. Sinto-me muitas vezes cansado de mim mesmo e tenho a impressão de que, viajando, posso enriquecer a minha personalidade e assim mudar um pouco. Nunca regresso de uma viagem exactamente com o mesmo eu que levei comigo.

Somerset Maugham, Um Gentleman na Ásia. Lisboa, Edições Tinta da China, 2013, p. 26-27.

3 comentários:

  1. E isso nada tem de surpreendente. Mudamos, sempre, ao longo da vida. Podemos ter ou não consciência disso. Podemos fazer (ou não) por isso. Na linguagem coloquial e no pensamento preconcebido "não mudar", "ser sempre o mesmo" é muito valorizado. Isso que é simplesmente uma impossibilidade é repetido incessantemente por muitas vozes, em uníssono, ou separadamente. Que efeito terá isso em nós? O equívoco, sempre o equívoco.

    Viajar para mudar o eu de que se está já cansado parece-me muito boa ideia e, principalmente, muito boa prática. Talvez a falta de surpresa de Maugham perante o outro resulte dessa predisposição para a mudança. Certamente - e aí discordo do que diz - isso não faz dele um mau viajante. A não ser pela frequência excessiva, que banaliza, talvez.

    Foucault dizia: "Escrevo para mudar o que penso." Uma outra forma de viagem?

    Fernando Pessoa, no seu belo e intenso poema Prece, termina-o dizendo: "Senhor, livra-me de mim!"

    Deleuze fala em "encontro", em "núpcias" que nos tornem capaz de "devir". E considera mais importante no devir, o que vamos deixando de ser do que aquilo em que nos vamos tornando.

    Irmos além de nós, essa é a viagem.

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  2. VIAJAR E ESCREVER OU FICAR ESCREVENDO?

    Sei que há uma ligação entre o facto de habitar ainda e sempre, cinquenta anos depois (mesmo que tenha morado ocasionalmente noutros locais de Istambul), na Residência Pamuk, a partir da qual a minha mãe me deu a conhecer o mundo pela primeira vez, comigo ao colo, e na qual foram tiradas as minhas primeiras fotografias, e a consolação que consiste em acreditar na ideia de que existe outro Orhan noutro ponto de Istambul. É por isso que sinto que a minha história tem algo de especial para a cidade e para mim próprio: numa época marcada pela abundância das migrações e pela criatividade dos migrantes continuei no mesmo lugar e na mesma casa durante meio século. A minha mãe dizia-me sempre num tom de tristeza: "Sai, vai a outro lado, faz uma viagem."
    Há autores, como Conrad, Nabokov, Naipul, que conseguiram escrever mudando de língua, de nacionalidade, de cultura, de pátria, de continente, mesmo de civilização. A criatividade, neles, foi buscar alento precisamente ao seu exílio ou migração. Da mesma forma, sei que a minha ligação à mesma casa, à mesma rua, e à cidade, influenciaram a minha identidade.

    Orhan Pamuk, ISTAMBUL. MEMÓRIAS DE UMA CIDADE, Lisboa, Presença, 2011, p. 14.

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  3. Interessantíssimo este outro modo de ver a questão da viagem e da escrita. Acredito que seja mesmo assim. Que seja essa a condição de Pamuk. Aquela que fez dele o escritor que é. Que aprofundando-se no lugar que é a casa, a rua e a cidade, se aprofundou como autor desse lugar. Que fosse essa a sua diferença, a marca da sua escrita.

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