sexta-feira, 29 de março de 2013

"Viajar? Para viajar basta existir". Bernardo Soares

Viajar? Para viajar basta existir. Vou de dia para dia, como de estação para estação, no comboio do meu corpo, ou do meu destino, debruçado sobre as ruas e as praças, sobre os gestos e os rostos, sempre iguais e sempre diferentes, como, afinal, as paisagens são.
Se imagino, vejo. Que mais faço eu se viajo? Só a fraqueza extrema da imaginação justifica que se tenha que deslocar para sentir.
«Qualquer estrada, esta mesma estrada de Entepfuhl, te levará até ao fim do mundo.» Mas o fim do mundo, desde que o mundo se consumou dando-lhe a volta, é o mesmo Entepfuhl de onde se partiu. Na realidade, o fim do mundo, como o princípio, é o nosso conceito do mundo. É em nós que as paisagens têm paisagem. Por isso, se as imagino, as crio; se as crio, são; se são, vejo-as como às outras. Para quê viajar? Em Madrid, em Berlim, na Pérsia, na China, nos Pólos ambos, onde estaria eu senão em mim mesmo, e no tipo e género das minhas sensações?
A vida é o que fazemos dela. As viagens são os viajantes. O que vemos, não é o que vemos, senão o que somos.

Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.II. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982. p. 387.

1 comentário:

  1. Leio um texto afirmando que é indispensável viajar, e concordo. Então dito "daquele" modo, até dá vontade de começar logo a fazer as malas.

    Leio um texto, como este, dizendo que para qualquer viagem nos transportamos a nós mesmos e que a verdadeira viagem tem de ser dentro de cada um de nós e não depende de viajar, e concordo, com o mesmo entusiasmo e vontade de agir desse modo.
    Quem nunca sentiu algo assim? Contraditório? Plural?

    É por isso que eu gosto da natureza humana.

    Esta adesão à linguagem e à respetiva eficácia, ao pensamento nela contido e à capacidade de conduzir à ação.

    Uma maravilha!

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