quarta-feira, 27 de março de 2013

"Tu derretes-me todas as ideias". Virgílio Ferreira

10 de Outubro [1944]

Meu diário! Há quanto tempo eu te abandonei! Mas tu sabes lá que voltas eu não tenho dado desde que te deixei! Viagens, viagens, fui de Melo [concelho de Gouveia] a Coimbra, de Coimbra à Figueira, da Figueira ao Porto, do Porto a Bragança... Espera que já continuamos. É preciso que eu diga o que é Bragança e por que razão eu vim cá parar. Mas... eu estou a falar contigo e devo falar com a Gina [Regina Kasprezykowski] que é minha namorada, minha noiva, minha futura mulher. Tu ouve que ainda é a melhor forma de falar entre os tolos.
Minha Gina!
De Bragança voltei ao Porto, do Porto a Lisboa e em Lisboa estive contigo... Aqui paro. Tu derretes-me todas as ideias, e diante de ti fico apenas assim mesmo: - derretido. Não te importes com isso. Eu serei para os outros aquilo que me torna viável entre eles, mas para ti eu quero ser apenas o amoroso em contemplação.
Estive em Lisboa contido, Ginita, contigo. E tão pouco tempo estive que eu não pude ser a razão completa por que gostas de mim. É na intimidade que nós somos o que os outros não toleram que sejamos. Por isso, quando uma pessoa íntima se põe de fora, repele-nos, não gosta de nós. Por isso só nos ama verdadeiramente quem nos ama no que somos na intimidade. Ardo em desejo de saber qual o teu sentir agora que repassas pela lembrança a nossa breve estadia em Lisboa. Sei bem que é um erro não nos projectarmos num momento o que somos numa vida; mas eu quis ser-te o que sou especialmente para ti. E não me importa o resto.
Estou de novo em Bragança. Como tudo isto é arcaico! Os colegas são velhos, gordos ou secos, coxos, com tiques como o clássico professor de liceu. Tudo velho, tudo passado. Uma praçazinha aldeã, casas negras, ruas tortuosas. E sempre um ar recolhido de monge na montanha. Onde fica o Algarve brilhante de casas brancas? Onde fica a Lisboa febril, eléctricos, automóveis, buzinas, cartazes luminosos e gentes gente? Onde estás tu, minha Gina?
Estou triste porque me sinto bem dentro de mim. Eu quero sair deste ermo, estou farto de pedregulhos, quero ir-me embora! Talvez ao menos, assim, eu seja um artista... O artista é o indivíduo que se julga só no mundo. Será decerto por isso que os outros o utilizam apenas como adorno, tal como um penduricalho de ouro. Muito bonito, muito valioso, mas penduricalho...
Onde estás tu, minha Gina?

Virgilio Ferreira, Diário Inédito 1944-1949. Lisboa, Bertrand, 2008. P. 47-48.

1 comentário:

  1. Para complementar este extraordinário testemunho (masculino) sobre a intimidade e o amor, aqui deixo este outro (feminino), que talvez ajude à compreensão daquilo que diz Vergílio Ferreira:

    "Quando uma mulher é tocada pelas tuas mãos, ela deve sentir que, no seu corpo, não são as imagens de ouro, que ela imaginou, que vão tomar forma no seu corpo, mas as tuas.
    (...)
    As mulheres, como sabes, suportam mal as mãos que não amam, porque só pelas que amam desejam ser acariciadas.
    (...)
    Sabe, no entanto, que conforme for a tua escolha, assim a mulher te dirá quem tu és. Aceder a esse saber dependerá tão somente do poder que manifestares em suscitar nela a tua presença."

    - Llansol, Maria Gabriela - da sebe ao ser (1988), Lx, Edições Rolim (p.p. 191 - 192)

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